Sensação térmica

 

A expandir sua poética através de fabulações de seres que podem ser assimilados como paisagens, figuras zoomórficas, alimentos, entidades trans-espécies e manifestações de uma memorabilia sonhada, Diambe (Rio de Janeiro, 1993) reverencia a inventividade efervescente que responde a máculas e muralhas impostas a corpos dissidentes na contemporaneidade. Em seu processo criativo, materializa criaturas que habitam uma natureza poderosa e autônoma, cujo poder sobrepuja o do ser humano e proporciona um escape de uma ilusória situação de dominação antropocêntrica. Paralelamente, na presente exposição, Diambe discute como culturas, em diversos contextos geográficos, consideram a temperatura local como fator determinante na escolha dos materiais a comporem seus objetos, endereçando a assimetria na reciprocidade de recepção sociocultural estabelecida pela diáspora africana no Brasil.

Em Sensação térmica, materialização de um sonho perpétuo ignizado por Diambe, apresentam-se pinturas que manifestam escolhas cromáticas calorosas, esculturas gotejadas em bronze com pátinas coloridas e bases de argila crua que racham em resposta ao tempo. As obras expostas nessa ocasião foram produzidas em um momento crítico de temperatura ambiental no início de 2024, com sensação térmica maior que 60 graus Celsius em algumas cidades do sudeste brasileiro. Ar e fogo confundiam-se. O calor alucinante atravessava não somente a matéria, mas a subjetividade posta em fogo no estabelecimento de uma poética do delírio. As gotas de suor que escorrem pelo corpo dançante. A saliva morna que recebe a água fresca. O suco da fruta mordida que colore o queixo e escorre pelo peito aberto.

Nesse contexto de assombroso fervor, o transporte das esculturas em cera do ateliê de Diambe para a fundição em metal tornou-se crítico: os corpos derretiam, desmontavam, metamorfoseavam-se em resposta à fulminante onda de calor. Esse torpor também causa uma zona de descontrole, estabelecendo limites desobedientes sobre a manipulação da cera de abelha que molda as esculturas. Desse modo, Diambe não detém total autoridade plástica sobre a matéria, mas respeita sua própria agência, sua multiplicidade vital e suas delirantes possibilidades de comportamento. A partir de profunda intimidade com os elementos plásticos, congrega em torno do calor uma relação colaborativa com os materiais, sempre em trabalho sinérgico e ação mútua.

Depois de confeccionados os moldes, receptáculos que transfeririam suas formas e entidades ao bronze incandescente, os seres em cera retornavam da oficina de fundição a Diambe em pedaços, logo derretidos novamente para corporificar outras subjetividades e produzir novas esculturas com o mesmo material, já impregnado de tantos ciclos de vida e morte. No décimo primeiro andar de um edifício no centro de São Paulo – repleto de frutos, vegetais e raízes colhidas na Mata Atlântica, na floresta amazônica ou negociadas em mercados no Benin –, o aroma que exalava da cera de abelha reaquecida por Diambe atraía frequentemente um pequeno enxame que retornava, em transe, ciclicamente à matéria que havia criado. A preparação de novos corpos desencadeava um chamado aos seres que produziram aquela massa plástica, em um reencontro no momento da transformação material. Esse ecológico fluxo cíclico sugere, inclusive, uma postura harmônica e sustentável de lidar com a matéria, em constante mutação.

Apesar das potências poéticas do calor, Diambe também alerta para os exílios climáticos e o racismo ambiental, a denunciar que as mudanças causadas pelo aquecimento global afetam de forma mais voraz pessoas com corpos dissidentes e grupos sociais marginalizados. Sua prática artística é perpassada pela temperatura desde quando ateava fogo em monumentos públicos que reverenciam ícones totalitaristas que, mesmo estáticos, continuam a violentar corpos e corroer histórias. O calor, por outro lado, também serve como analogia à entropia social causada pelos sistemas que mantêm predatórias dinâmicas colonialistas e imperialistas.

Ao fundir corpos de diferentes âmbitos biológicos e espirituais, Diambe incorpora entidades híbridas que desafiam categorizações e encorajam relações mais respeitosas em uma natureza que pode ser aplicada às esferas sociais. Sendo pessoa negra, desobediente da binariedade de gênero, Diambe entende o corpo como lugar e o lugar como corpo, em uma espelhada geografia sempre política: “o assentamento (também chamado de ibá) no candomblé é, ao mesmo tempo, a morada do orixá, o próprio orixá materializado e o local onde a relação entre pessoa e orixá se faz”¹. Suas pinturas em têmpera de ovo retomam a origem da técnica milenar originária do nordeste africano, encontrando-se na indeterminação entre paisagens figurativas, seres surrealistas, abstrações cromáticas e outras miríades de possibilidades de existência. Seus trabalhos acontecem propositalmente em uma zona limiar, inegociavelmente híbrida, a amalgamar reinos naturais e metafísicos.

Em respeito à individualidade dos seres que cria e põe no universo, Diambe escolhe que suas esculturas em bronze fundido sejam únicas, sem outras edições. Dessa forma, obedece a epistemologias ancestrais que entendem a criação – artística, nesse caso, mas também de qualquer outra natureza – como provedora de agência, dotando um ser de corpo e integrando-o em dinâmicas naturais como indivíduos que, embora autônomos, não existem sem comunidades harmônicas de cooperação.

Através de sistemas de saberes da diáspora africana e de tradições amefricanas2, as criações e corporificações de Diambe se relacionam com a noção de alimento, de oferenda, como combustível do corpo e da alma. Comer é, portanto, exercer a sua própria divindade e a do alimento, irradiando energia, prazer, felicidade e alegria de viver. Oferendar isso ao mundo abarca noções dilatadas de tempo ao criar entidades que, postas nesse banquete-encruzilhada, vão durar muito mais tempo que seu próprio corpo, que os vegetais moldados que constituem partes das esculturas e que o ovo utilizado na conservação da vivacidade dos pigmentos na têmpera. Ao reconhecer a perecibilidade do próprio corpo, Diambe sonha em direção a uma oferenda mais duradoura em temporalidades que extrapolam certas noções de vida.

 

Mateus Nunes

 

¹ MARQUES, Lucas. “Fazendo orixás: sobre o modo de existência das coisas no candomblé”. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 38 (2), 2018, p. 231.

² GONZALES, Lélia. “A categoria político-cultural de amefricanidade”. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 92/93, 1988, p. 77.

Oráculo Vermelho, 2024

têmpera sobre linho

82 x 61,5 cm

Where Beauty Lives, 2024

têmpera sobre linho

56 x 40 cm

Sensação Térmica, 2024

alumínio

90 x 58 x 35 cm

Colméia, 2024

bronze patinado

70 x 52 x 45 cm

Gota, 2024

têmpera sobre linho

89,5 x 61,5 cm

Infinito azul com sol por cima, 2024

têmpera sobre linho

56,5 x 39,5 cm

Encanto, 2024

têmpera sobre linho

38,5 x 56,5 cm

Sonho Sonhado, 2024

têmpera sobre linho

60 x 40,5 cm

Alquimia, 2024

óleo sobre linho

91,5 x 56,5 cm

Nossos Passos Vem de Longe, 2024

bronze e cabelo humano

58 x 60 x 57 cm

Dangbé, 2024

bronze patinado

65 x 75 x 60 cm

Coisas Levam Tempo [Things Will Take Time], 2024

têmpera sobre linho

61,5 x 52 cm

Onda de Calor, 2024

têmpera sobre linho

62 x 52,5 cm

Apoteose, 2024

bronze patinado

39 x 56 x 50 cm

Mãe-Mar, 2024

bronze patinado

40 x 30 x 18 cm

El Niño, 2024

bronze patinado

16 x 16 x 15 cm

Estranha B. [Strange B.], 2024

bronze patinado

53 x 23 x 23 cm

Lindacelva [Beautiful Jungle], 2024

bronze patinado

47 x 32 x 22 cm

Nunca Acaba [Never Ending], 2024

têmpera sobre linho

89,5 x 63,5 cm

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