Ianelli: obra voltada à percepção
A exposição “Ianelli: obra voltada à percepção” traz esculturas, pinturas e pasteis, realizados pelo artista dos anos 1970 a 2000, entre a maturidade artística e o apogeu de sua obra. Arcangelo Ianelli trabalhou com a figuração e a abstração de forma pragmática, sempre em busca de desafios. Ao longo de 60 anos, Arcangelo expressou-se de forma multidisciplinar. No desenho e na pintura, experimentou diferentes técnicas como o carvão, o grafite, a gravura, o guache, o pastel, a pintura a óleo e a têmpera a ovo; e na escultura usou madeira, mármore e ferro.
Atenção ao entorno e decisão caracterizam a abertura de Ianelli frente aos múltiplos embates e diálogos com o seu tempo. Lucia Santaella afirma que,“se os sistemas e formas de linguagem se reproduzem, se readaptam, se transformam e se regeneram como as coisas vivas, é para melhor expressar as mudanças de ordem no pensamento de uma sociedade”.[1]
A trajetória de Arcângelo Ianelli tem tudo a ver com as mudanças estéticas pelas quais a arte no Brasil passou a partir do projeto modernista, seguido do advento dos museus, das bienais, e na sequência, das celeumas entre abstração informal e geométrica. Marcado por operações de passagens difusas e graduais, seu percurso assinala a clara opção de adotar o projeto racional do Modernismo quando a obra amadurece. Afastou-se, contudo, das visões maniqueístas ou por demais positivistas das tendências construtivas, refutando os rótulos de Concreto ou Neo Concreto para a sua obra, Ianelli prezava muito a liberdade de expressão.
Ele nasce em São Paulo em 1922, em plena eclosão do Modernismo e começa a pintar aos 21 anos, em 1944, no apagar das luzes da Segunda Guerra Mundial. Desde o início perseguia “os aspectos construtivos da luz e privilegiava os elementos compositivos da paisagem, por meio do desenho rigoroso e contido”, escreve Fábio Magalhães[2].
Figurativo nos primeiros quinze anos da obra, a tônica no colorido vibrátil já integrava as passagens em sua poética, sempre guiada pela síntese entre cores e planos da tela. Na entrada dos anos 1960, vem a fase da “Transição”, aonde tudo escurece. Anoitece na pintura, as camadas de tinta são espessadas por meio do uso da espátula. Mas o avanço na década de 60 foi decisivo na obra de Ianelli, quando a figuração foi extremamente simplificada.
Segundo o crítico carioca Frederico de Morais[3], “a estrutura da paisagem ainda persiste, mas foi reduzida à sua essencialidade. O caminho para a geometria estava decidido”.
Neste período o artista experimenta figurações diversas; é interessante notar como ele opera. Embora geométrico, Ianelli não adota o uso da cor chapada, pura, como faziam os artistas do Concretismo em São Paulo. Ao contrário, na tela As três formas, de 1967, ele traz a profundidade de campo para a pintura, tal como em Leitora, de 1944 e em Retrato de Katia,1955, ambas figurativas – quando ele já entrelaçava as cores com a estrutura ortogonal, traço fundante em sua obra.
A permanência em Paris por dois anos colocou o artista em franco convívio com seus pares como Antonio Bandeira, Arthur Luis Piza e Sergio Camargo, a partir de 1965. Segundo Rubens Ianelli[4], “a geometria se instala na sua obra enquanto ainda estava na Europa”, quando trabalhou os grafismos numa perspectiva do abstracionismo informal.
No final dos anos 1960, quando abre rumo à fase dos Grafismos, pode se constatar a origem do trabalho escultórico na pintura. A epiderme da tela se adensa, adquire texturas e mais espessura. A volumetria privilegia a figura sobre o fundo, como a querer descolar-se e se deslocar da superfície planar para lançar- se ao solo fluído do espaço, como se vê nas obras Outono em Paris, 1967 e Grafismo, 1968.
Enquanto Rubens Ianelli[5] acrescenta que os Grafismos “decorrem da sua experiência no Peru” por volta de 1963, Mariana Ianelli[6], talvez a sua mais importante biógrafa, assinala que “os traços da fase do Grafismo aparentam naturalidade de um registro talhado na pedra” e cita “motivos rupestres que passam por obras recolhidas de algum tipo de escavação arqueológica”.
Os Grafismos parecem clamar pela independência da forma em relação ao suporte bidimensional. Elaborados entre 1967 e 1970, ano em que assume de fato a sua fase geométrica, configuram grandes blocos de figuração e parecem rastrear e anunciar o trânsito de Ianelli pela tridimensionalidade. O primeiro estudo escultórico ocorreria em 1975, com a realização de um mural para a fachada do edifício Diâmetro, na Av. Faria Lima em São Paulo.
As maquetes iniciais apresentam a geometria em relevo, com formas e vazados a criarem sombreados. Ainda não são esculturas, mas evidenciam o diálogo com as obras de Piza e Camargo e indicam a herança de um convívio profícuo entre os artistas em Paris.
Atento ao seu entorno, Ianelli observa Rubem Valentim na oitava Bienal de São Paulo, no início dos anos 1970. Na série Balé das Formas pintada à têmpera - técnica que adotou por sete anos após intoxicação por tinta a óleo durante o período em que esteve em Paris - transparece também a troca com Volpi. Para o historiador de arte Tadeu Chiarelli[7], esta série representa “um momento concretista da obra de Ianelli, então em diálogo com Volpi, que mergulha nas formas modulares que caracterizam a arte construtiva e aliam o rigor do construtivismo a uma certa liberdade da cor”.
Os diálogos naquele período estendem-se para além do convívio com Volpi. Interessante é levarmos em conta também a proximidade de Ianelli com Hermelindo Fiaminghi, o qual era muito próximo de Volpi. Em 1959 Fiaminghi se opôs ao Concretismo e rompeu com Waldemar Cordeiro para instaurar um discurso que colocava em cheque a essência do movimento concreto paulista.
A introdução da cor- luz em sua obra reconfigurou a sua linguagem. A sintaxe concretista foi questionada por meio da pictorialidade, da sobreposição de cores, da transparência. Estes novos rumos na pintura de Fiaminghi assinalaram a passagem da cor pura e chapada, típica do Concretismo, para a cor artesanal. A cor construída à têmpera, mediada pelo gesto da mão do artista, levou-me a cunhar o termo “Concreção Sensória”[8] no início dos anos 1990.
Se arte e ambiente artístico andam de mãos dadas, a concepção estrutural da obra, junto com a busca da luminosidade cromática presente na obra de Ianelli, podem ter sido pontos de afinidade e, portanto, de aproximação entre os dois artistas. Unidos ao redor de Volpi, teriam estruturado as suas poéticas e intuições com ênfase na construção pictórica, num posicionamento que levava em conta o rigor formal sim, mas a partir de cada visada pessoal.
Katia Ianelli[9] nos lembra que, “os três artistas tinham, cada qual, uma receita diferente de têmpera, mas por fim, todos optaram pela têmpera a ovo”.
Em relação à “Concreção Sensória”, termo que usei em 1992 para a obra de Fiaminghi, o termo “Geometria Sensível” - criado pelo crítico Roberto Pontual em 1978, na exposição de arte latino-americana no MAM do Rio de Janeiro - se aplica perfeitamente a Ianelli.
Segundo Marta Traba[10], na “Geometria Sensível” ocorrem indefinições nos campos de cor, dissolução e corte pouco ortodoxo das formas; num sentido poético toma-se a sensibilidade como certeza. Para Traba, a obra de Ianelli enquadra-se perfeitamente neste conceito pela criação de sinfonias e vibrações cromáticas, associadas ao deslocamento de formas. Entre os anos 1980 e 1990 Ianelli participou intensamente do circuito de arte internacional e latino americana. Expôs em várias cidades como Roma, Paris, Londres, Tóquio e no Equador, em 1989, recebeu o Grande Prêmio da Bienal de Cuenca. No México em 1991, ganhou o O Grande Prêmio da Bienal Ibero-Americana do México.
Na década de 80 ele criou maquetes para exposições ao ar livre e realizou novos estudos para painéis em relevo. Este é um período no qual o artista produziu pinturas e esculturas, as quais aos poucos, foram se tornando mais orgânicas. As questões passaram a ser tonais e espaciais, a dimensão das telas se ampliou. A pintura, aonde Ianelli já tratava o espaço de maneira peculiar, ganhou então ainda mais profundidade.
É o caso dos Diálogos das Formas do final dos anos 1980. Isto se acentuou com a chegada dos anos 1990, na sua fase Pós Geométrica, quando a tônica passou a ser a celebração da luz e da cor em seu trabalho. O tratamento cromático então realizava a modelação espacial e tornou-se protagonista, a obra adquiriu substância e lirismo. O aspecto aveludado da cor nesta fase fez com que o crítico Frederico de Morais[11] se referisse às suas Vibrações como “carícias táteis”.
Mas a ortogonalidade permaneceu, insistiu em definir espaços na superfície planar da tela. Não houve exatamente uma dicotomia entre linha e cor em sua obra, mas sim ilusão perspética, que levava o olhar do espectador para o centro da tela. Ao longo da sua produção o que ocorreu foi um vai-vém experimental e estratégico, que promoveu sistematicamente o convívio entre pintura e trama linear. E, se de um lado a linearidade estava lá, de outro as emoções contidas também estavam.
Ianelli sempre tencionou a sintaxe concretista por meio da cor construída durante o percurso de sua linguagem. Portanto o efeito ótico que ocorre na série das Vibrações é definido pela malha estrutural recriada, agora invisível, a conferir profundidade à tela. Na verdade, o artista constitui sua gestáltica a partir da “impressão” causada pelo efeito luminoso da cor; a luminosidade cromática é um efeito imaginado, abstração possível somente no exercício da cor por meio da cor, na prática e não na teoria.
Simultaneamente à pintura, a produção tridimensional ampliou-se e firmou-se em sua obra a partir de 1992. Este fato surpreendeu a crítica na época, mas não deveria haver surpresa em relação ao seu trânsito com as diferentes linguagens. Se o desenho é coisa mental, como dizia Da Vinci, então me parece que o saber desenhar se converte num poder, o poder de atuar com todas as linguagens da arte.
Os seus Relevos Pintados, dos anos 2000, estabelecem uma relação direta com o desenho e com a fase inicial do painel em relevo de 1975; a pintura parece flutuar no espaço por meio da sobreposição dos recortes de madeira e das figuras geométricas recortadas. O desenho sempre foi conceito e síntese na obra de Ianelli, com a estratégia de situar o olhar do espectador entre o real e o irreal a partir da trama geométrico-linear por baixo da pintura. Assim como na pintura, aonde o pensamento do desenho se mesclou ao universo bidimensional, apagaram-se as fronteiras entre desenho e escultura.
As esculturas da última década, por sua vez, são mais sensuais que as dos anos 1990 e caminham lado a lado com as pinturas do momento. Se antes as formas geométricas, como o retângulo e o quadrado, permearam pintura e escultura, agora as formas tornaram-se orgânicas, sinuosas. Quando o artista domou a resistência da matéria escultórica - mármore e madeira - assim como o fez na pintura, o conjunto das obras passou a emitir conteúdos que foram além do repertório da materialidade e da forma. Isto se evidencia nas obras Sem título, 2002, hoje no Jardim da Luz ou em Os amantes, 2000, ou, ainda, em Outono silencioso, 2003, hoje no jardim do MUBE, todas elas em São Paulo.
O desenho, desdobramento poético do conceito e do pensamento, firmou-se como estrutura mental subjacente à obra e habita o território do imaginário de Ianelli, portanto pintura e escultura decorrem do mesmo. O desenho escondido, ora camuflado pela espessura das camadas pictóricas, ora lançado ao espaço sob a forma escultórica é a própria coreografia, nuança da obra, matriz das pinturas e das esculturas. Ele vem como projeto mental revelado da penumbra, mas sua presença, constante, sempre orientou a obra de Ianelli “pela” e “para” a percepção sensível.
Daniela Bousso
Referências
BOUSSO, Vitoria Daniela. Fiaminghi, a Concreção Sensória. Dissertação (Mestrado em Arte Brasileira) - ECA-USP, São Paulo, 1992.
CHIARELLI, Tadeu. Arcangelo Ianelli e seu tempo, um outro ponto de vista. Revista Univille: Arte e arte na educação, Joinville, v. 10, n. 1, jul. 2005.
______. Um Modernismo que veio depois: Arte no Brasil - primeira metade do século XX. São Paulo: Alameda, 2012.
IANELLI, Mariana. A trajetória de um artista. In: IANELLI, Katia; AQUINO, Alfredo. (Ed.) Ianelli. São Paulo, Via Impressa, 2004. p. 32.
MAGALHÃES, Fábio. A sensibilidade poética de Ianelli. In: Ianelli, caminhos da figuração. São Paulo: Museu de Arte Brasileira, FAAP, 2004. p. 24.
MORAIS, Frederico; GULLAR, Ferreira. Os anos sessenta. In: Ianelli, 50 anos de pintura. São Paulo: Museu de Arte de São Paulo, 1993. p. 30-33.
MORAIS, Frederico. Vibrações cromáticas. In: Ianelli, 50 anos de pintura. São Paulo: Museu de Arte de São Paulo, 1993. P. 56.
SANTAELLA, Lucia. O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense, 2009. p. 2.
TRABA, Marta. #11 La geometría sensible. In: Historia del Arte Moderno Contada desde Bogotá. Lalulula.tv, 2016. Disponível em:
[1] SANTAELLA, Lucia. O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense, 2009. p. 2.
[2] MAGALHÃES, Fábio. A sensibilidade poética de Ianelli. In: Ianelli, caminhos da figuração. São Paulo: Museu de Arte Brasileira, FAAP, 2004. p. 24.
[3] MORAIS, Frederico; GULLAR, Ferreira. Os anos sessenta. In: Ianelli, 50 anos de pintura. São Paulo: Museu de Arte de São Paulo, 1993. p. 30-33.
[4] Depoimento à autora em 02/05/2018.
[5] Depoimento à autora em 02/05/2018.
[6] IANELLI, Mariana. A trajetória de um artista. In: IANELLI, Katia; AQUINO, Alfredo. (Ed.) Ianelli. São Paulo, Via Impressa, 2004. p. 32.
[7] CHIARELLI, Tadeu. Arcangelo Ianelli e seu tempo, um outro ponto de vista. Revista Univille: Arte e arte na educação, Joinville, v. 10, n. 1, jul. 2005.
[8] O termo ”Concreção Sensória” foi cunhado pela autora, para análise da obra de Hermelindo Fiaminghi. BOUSSO, Vitoria Daniela. Fiaminghi, a Concreção Sensória. Dissertação (Mestrado em Arte Brasileira) - ECA-USP, São Paulo, 1992.
[9] Depoimento à autora em 02/05/2018.
[10] TRABA, Marta. #11 La geometría sensible. Lalulula.tv, 2016. Disponível em:
[11] MORAIS, Frederico. Vibrações cromáticas. In: Ianelli, 50 anos de pintura. São Paulo: Museu de Arte de São Paulo, 1993. P. 56.