Existem artistas que escapam pelas frestas da história, ou que são “escapados”, como bem se sabe. Mas, há vezes em que os esforços de reescrita e reconhecimento são capazes de reparar as profundas lacunas causadas pelos apagamentos e esquecimentos. A mostra “Aurelino: Às Margens Urbanas” faz parte deste empenho de resgate, apresentando uma seleção de obras que cobrem quase 40 anos da carreira do artista baiano. Vivendo na periferia de Salvador por toda sua vida, começou a pintar ainda na década de 1960, e conviveu com importantes nomes da cena artística da época, como Agnaldo Santos, Mário Cravo Neto – a quem chegou a auxiliar em seu ateliê – e Lina Bo Bardi – diretora do MAM da Bahia, que muito o encorajou.
Com toda uma mística em torno do artista – que é esquizofrênico, nunca aprendeu a ler e a escrever (salvo sua assinatura grafada nas telas que produz), sempre viveu às margens da cidade e da sociedade e às voltas com o alcoolismo e o tabagismo –, sua produção esteve frequentemente associada a uma ideia de arte naïf, ou popular, e parte de seu reconhecimento se deu pela aura de excentricidade de sua figura. No entanto, há mais em Aurelino do que apenas a improbabilidade do fazer artístico nessas circunstâncias, ou a curiosidade sobre uma trajetória insólita. No decorrer de tantos anos de pintura, é possível reconhecer uma dedicação exaustiva à prática, que excede qualquer diletantismo ou acaso. Assim como grandes nomes da história da arte, há em Aurelino uma pulsão criativa tão intensa que o embala apesar das vicissitudes de uma vida precária, móvel e instável, tornando-se o motor vital para uma contínua e sucessiva reinvenção de temas, traços, figuras, cores e texturas.
É importante notar, aliás, que talvez seu atributo mais marcante e peculiar seja sua capacidade de reinventar-se sem perder uma identidade singular. São muito especiais as obras de figuras marcadas por contornos brancos, negativos, como se brotassem do fundo apenas em volumes de cor. Em outro conjunto, o oposto se materializa em espessas linhas pretas ortogonais que estruturam a composição, delimitam campos e dão ritmo às formas. Há ainda peças que se desenham por um acúmulo de finas linhas coloridas, repetidas em hachuras de diferentes configurações, mais densas e abstratas. Por fim, alguns trabalhos do início dos anos 2000 destacam-se por um uso de cores mais vibrantes e saturadas, de massas ora geométricas, ora sinuosas, que recobrem a totalidade da superfície sem respiro ou intervalo.
Seus temas também são igualmente variados, mas a cidade é sua grande protagonista. Em diversos trabalhos vemos uma variedade de planos do tecido urbano que são achatados e amontoados no campo bidimensional, evocando a estilização da geometria do casario das obras maduras de Volpi. Imagens de pontes, avenidas, viadutos, torres, prédios e casas se confundem ora com veículos de transporte (ônibus, carros, e às vezes até embarcações), ora com cabeças e membros de corpos recompilados ou animais estranhos, em arranjos ora mais figurativos, ora mais abstratos. As formas são empilhadas e articuladas em sucessões irreais e angulações estranhas que sugerem uma topografia irreal, imaginada, desdobrada sobre si mesma e esquematizada como uma cartografia fantástica. Na verdade, esse mapeamento decorre das andanças do artista por Salvador, que apreende nas ruas, construções e transeuntes as cenas quiméricas que transpõe para suas pinturas. Na obra de Aurelino, convivem em harmonia que é o concreto e o que é fantástico, o que é estável e o que é mutável, o que se descobre e o que se reinventa, num corpo de trabalho no qual ainda há muito para se explorar.