Calça de ginástica: ontem e hoje
Talvez seja muito fácil qualificar a trajetória artística de Rafael Alonso como uma obra que se apropria de um universo popular e midiático. Como o artista mesmo relata em conversa com o autor, “anteriormente falei dos monitores, antes ainda falei dos isopores de venda de bebida e utilizei materiais do cotidiano.” Gosto de pensar que para além desse mecanismo de apropriação de uma imagem ou uso popular e comum, o que está em jogo é um pensamento que remonta ao princípio da arte moderna. Manet, comentando a nova era moderna que a França e em especial Paris atravessava com uma reformulação total do seu espaço urbano e arquitetônico simultaneamente a uma tentativa de apagar as marcas indeléveis da pobreza, foca seu “desvio moderno” no ordinário e no banal. Ilustrando essa imagem, são notórias as suas pinturas apresentando apenas um limão ou um maço de aspargos (ambas produzidas em 1880) assim como o óleo sobre tela “O velho músico” (1882). Nesta última, está incluída uma variedade de temas diretamente relacionados à visão de Baudelaire sobre a modernidade: novos temas modernos, personagens cujas existências estavam sendo transformadas pela reconstrução de Paris por Haussmann, temas “heroicos”, derivados de tipos comuns, o “refugo da cidade”. A pintura pode ser descrita como uma composição de “tipos” da sociedade contemporânea: crianças indigentes, boêmios, ciganos, um maltrapilho trapeiro, um burguês empobrecido. Percebam o quão estranho e abjeto era fazer com que esses tipos aparecessem em larga escala nos salões oficiais ou não de um Paris ainda neoclássica.
O que pretendo construir aproximando as poéticas de Manet e Alonso é que ambos, ressaltando as suas distintas particularidades, foram comentadores de seus respectivos tempos. Há fortemente um índice do que poderíamos identificar como uma pintura que reflete sobre o espaço social em que está instalada, sendo que ambos partem da banalidade ou do ordinário. Se anteriormente a pesquisa de Alonso abarcava uma leitura sobre as fitas adesivas que decoram os isopores de vendedores da praia ou a aparição e o uso descontrolado de monitores na sociedade, agora seu interesse reflete-se no universo do esporte. É curioso pensar em como o culto ao corpo se faz também no culto às cores. Os equipamentos esportivos (calças, tênis, camisas, shorts, etc) que são tema e símbolo dessa mais recente pesquisa do artista refletem sua “modernidade” na cor. E aqui o artista desvia para uma estratégia bastante interessante: entre as camuflagens de suas pinturas, as sobreposições e repetidas camadas de cores, formas e tramas, Alonso fabrica uma “pintura cafona”. Este termo está diretamente ligado ao exagero, excesso, explosão de luzes e cores que esses equipamentos exaltam e que o artista utiliza em sua obra. Percebo que há de forma concomitante um apreço tanto por um comentário debochado sobre essa atmosfera quanto um interesse enquanto pintor pelo uso que a indústria têxtil e da moda fazem das cores e formas como apreço comercial e estético.
Nesse universo onde se mistura saúde e disciplina com o corpo, o artista expõe de forma crítica o consumo desmensurado da sociedade. Há um certo descarte e rapidez no uso desses tênis, calças e shorts. E essas características de certa forma são deslocadas para uma pincelada rápida e veloz que Alonso aplica sobre as telas. Se a indústria da moda vende seus produtos como algo que reflete um despojamento, um bem-estar consigo mesmo, as pinturas de Alonso convergem para um ponto distante: comportam-se de forma estranha a esse corpo disciplinado. São exageradamente coloridas e em alguns momentos ressaltam ou ampliam marcas ou símbolos que estavam camuflados, entre outros tantos, e que são encontrados em bermudas ou em tênis de corrida multicoloridos. Estas pinturas repousam sobre um terreno em que são estimulados sentidos contraditórios, porque se há uma aversão por conta de um estímulo cromático que causa um certo choque no uso de cores muito díspares em seu conjunto, por outro lado esse mesmo sistema estimula um jogo óptico que possui um acento Pop e afirmo não apenas por uma trama de cores e formas que o aproxima desse universo mas substancialmente pelo caráter corrosivo do Pop e principalmente pelos acentos irônico e, como já dito, debochado.
O trabalho de Alonso oxigena o estado da pintura contemporânea, numa cena em que muitas vezes penso estar inchada de “novos” valores, métodos ou estratégias, todos eles, claro, bem questionáveis. Como um cronista contemporâneo, seu trabalho expõe as incongruências da sociedade, experimenta outros campos de atuação para a cor ao mesmo tempo em que não retira a pintura do seu modelo crítico de refletir sobre o seu tempo e lugar.
Felipe Scovino