Do que nomeia os saberes de Marcelo Moscheta
Você se lembra? Você se lembra daqueles ficheiros metálicos imensos, com a face tomada por pequenas gavetas, estas repletas das fichas de catalogação datiloscritas com o precioso número de tombo que permitia localizar cada volume impresso da biblioteca por entre os muitos corredores de estantes de madeira ou metal? Lembra-se de como as fichas ficavam organizadas por ordem alfabética do sobrenome do autor; e as estantes dispostas em ordem crescente de numeração? Esses números, traduções arbitrárias da organização do saber em disciplinas e áreas de conhecimento, reuniam em uma mesma estante publicações mais ou menos afins. A ordem alfabética das fichas, por sua vez, produzia em sua sequência os mais chocantes encontros entre autores e temas que se justapunham em papéis vizinhos.
Lembrar ou não de tais aparatos de organização dos conhecimentos diz muito sobre a idade (e assiduidade aos estudos) de cada um de nós. Já para desconhecer o funcionamento geral dos mecanismos de busca do google e afins é preciso estar, bem, bastante desconectado de nosso tempo. Neles, não é preciso saber o nome do autor, nem mesmo saber o que se está procurando: algumas palavras chave, uma pergunta ou um fragmento de frase são suficientes para ativar um algoritmo que, em altíssima velocidade, processa o maior banco de dados da história da humanidade e tenta “adivinhar” as ocorrências com maior probabilidade de interessar o usuário (levando em conta suas outras buscas, seu histórico, sua localização e horário, além de todas as outras buscas já feitas através do mesmo algoritmo, hierarquizadas por ordenação, recorrência e por uma avaliação de desempenho pregresso).
Veja, não se trata apenas de uma mudança de ferramentas: o que muda é a própria relação com o conhecimento. Estamos nos afastando (por superação? por decadência?) das estruturas modernas de organização do saber. As novas ferramentas são mais amigáveis e ágeis, têm o benefício de ocupar muito pouco espaço e serem extremamente móveis, mas, por outro lado, operam mecanismos opacos, difíceis de compreender e mesmo de visualizar: são ferramentas criadas por corporações, atualizadas em tempo real, parciais, arbitrárias e dotadas de engrenagens invisíveis. As máquinas modernas de saber são pesadas, lentas, também arbitrárias e parciais, mas pelo menos fáceis de criticar, pois seu funcionamento depende da reiteração ad nauseum de seus princípios.
Para o pensamento moderno, não basta, por exemplo, que exista a ideia da biologia como ciência, ela precisa ser constantemente reafirmada por cadeiras universitárias, enciclopédias, dicionários especializados, por todo um ramal de catalogação bibliográfica, linhas de pesquisa etc. Cada conceito moderno precisa ser reforçado como categoria praticada pelo moto-contínuo da modernidade: nomear, abstrair, dividir, analisar, ordenar, subdividir, classificar, comparar, provar e assim sucessivamente.
Marcelo Moscheta vive em tensão com esse modelo de organização do conhecimento. Por um lado, ele investe grande energia em deslocamentos por ambientes naturais – o Ártico polar, o deserto do Atacama, a fronteira entre Brasil e Uruguai – nos quais imerge como um explorador fenomenológico da paisagem, das pedras, dos caminhos e da natureza; neste aspecto, ele procura os ambientes limítrofes em relação ao campo organizado da cultura e dos saberes. Por outro lado, ele herda da tradição ocidental (e mais diretamente de seu pai, professor de botânica) uma série de princípios de organização sistemática das coisas do mundo: catalogação, medição, seriação, tabulação, reprodução e nomeação de espécimes, fragmentos do mundo natural traduzidos como itens em compêndios supostamente objetivos e verdadeiros.
Todas essas ações frias do saber técnico – identificadas com o cientificista pathos do pensamento moderno – integram os processos criativos de Moscheta da mesma forma que os cálculos de resistência dos materiais integram os projetos de um bom arquiteto. São modelos herdados que fazem com que a criação não parta exclusivamente da folha em branco, mas também de equações já apreendidas sobre o comportamento das coisas: imposição de limites que lhe reveste o pensamento com um véu de objetividade e verdade. Estamos falando de relações preexistentes entre formas de pensar, modos de olhar e ações de análise que são exacerbados pelo artista até se tornarem estruturas conceituais, esquemas compositivos e gestos poéticos, respectivamente.
Na obra de Moscheta, tudo que havia de peculiar, pesado e artificioso na organização dos já nostálgicos ficheiros das bibliotecas retorna ampliado e reformado por desígnios poéticos muitas vezes alimentados por imersões em paisagens desconhecidas e por projeções de forma, desenho e enquadramento. Assim, o que é dura artificialidade da organização do saber recebe uma paródia sagaz e se transmuta em lúdico arranjo.
É sabido que o pensamento analítico torna-se mais e mais cego para a totalidade do contexto quanto mais se aprofunda na tarefa de nomear e estruturar partículas menores e mais recortadas da realidade concreta – Marcelo Moscheta não corrige essa miopia, mas se aproveita dela para trapacear no jogo do pensamento moderno e criar suas máquinas de sonho presente.
Paulo Miyada