Em conversa recente com a paulista Célia Euvaldo, citei-a para si mesma. Na cronologia feita a próprio punho para o livro Célia Euvaldo2, a artista discorre sobre os procedimentos da pintura - como arrastar e raspar a tinta sobre a superfície da tela - e afirma: "nesses procedimentos há certa independência do suporte, de modo que a tinta preta só recobre a área que lhe for necessária, restando na tela algumas partes em branco". Indaguei-a sobre o uso, ainda que possivelmente não de todo consciente, da palavra "necessária" e sobre a ideia de "necessidade" no campo da arte. "Não dá para ser de outro jeito", Euvaldo ponderou. Mais que uma imposição, um decreto, a frase parece fruto de uma total ciência da responsabilidade que nos recai ao decidirmos colocar um novo objeto num planeta já abarrotado de coisas. Ao decidirmos, portanto, torna-se imprescindível pensar o motivo e o modo de fazê-lo
Esta enxuta frase de Euvaldo sumariza mais de quatro décadas de reflexão prática acerca da pintura. Como coloca o curador José Bento Ferreira em seu texto O que os olhos falam3, "a opção pela pintura não pode ser entendida como algo natural. Pode ser que fique muito bem para um artista o discurso sobre uma identidade com o meio de expressão de sua escolha, mas para nós, que vemos os trabalhos e pensamos sobre as suas possibilidades de sentido, aquilo que os artistas fazem deve vir antes daquilo que eles falam". Suas telas - assim como os desenhos realizados - demonstram o rigor com que a artista se dedica a explorar os recursos disponíveis, que, por auto-imposição, são mínimos. Tais meios tornam-se "variáveis" na ação da artista, na medida em que sua combinação define o objeto final. De saída, a escala do trabalho. Ora, as maiores dimensões nos inundam, enquanto as proporções diminutas desafiam o controle de resolver-se numa pequena área. Já entre as ferramentas de escolha, vassouras, brochas e rodos, estes deixarão - e serão aceitas - certas marcas na superfície. A partir daí, é preciso decidir-se pela maior ou menor pressão a ser impressa sobre o instrumento. E, então, o gesto. Antebraço, braço, corpo todo. Unidades de medida usadas na investida sobre a tela - seja grande ou pequena -, que se encontra pousada no chão. A artista se debruça sobre o plano e nele opera.
É curioso pensar que a austeridade da atitude da artista sobre cada superfície não preceda de um desenho projetual. Não há uma estratégia em relação ao ataque, mas sim um controle de possibilidades. Isto porque, como nomeia Euvaldo, seu trabalho não é gestual e muito menos expressionista ou fruto de subjetividade, ele é o próprio gesto. Há precisão no pensamento, na escolha dos parâmetros mencionados, mas o acaso, segundo a artista, é fundamental. E, como todo pintor experiente, para permitir-se aos auxílios luxuosos do acaso, há de se saber o que lhe compete e o que compete à "imperfeição" da técnica. Posto de outro modo, é importante saber qual acaso serve e qual não.
Ao longo de sua trajetória, o preto marfim desenvolve-se pelas telas de Euvaldo sem alcançar todos as extremidades do quadro de forma simultânea. Solta, por assim dizer, a forma ainda pode ser vista enquanto "coisa" - nas palavras da artista - e não área de cor. A escuridão do preto destaca cada um de seus deslocamentos planares, seja pela reflexão da luz sobre o óleo, como em Pierre Soulages, seja pelo seu irremediável rastro, como nos desenhos de Richard Serra ou na tradicional grafia japonesa à pincel.
Os últimos cinco anos testemunharam a adição de outras cores no trabalho de Euvaldo. Nota-se a presença da matéria diluída rosa, verde, azul, entre outras, contra a matéria densa preta. Negando um possível lirismo, ela não faz concessão à cor como "maior das seduções sensíveis", como diz o filósofo Gaston Bachelard4. As novas cores, junto ao preto de todas as telas, parecem trazer uma voltagem a cada obra final. Como afirma o curador e crítico Ronaldo Brito, “elas [as cores] irrompem no quadro, resolutas, instintivamente misturadas e diluídas. A sabedoria consiste em achar sua ‘temperatura’, o grau de intensidade que as confronte e aproxime aos pretos e brancos com os quais se estranham e convivem”5. Quando as insere, parece fazê-lo no sentido de despoetizá-las. A ampliação da gama acessada não aponta para uma renúncia por parte da artista à sobriedade de sua poética. Tal como opera o poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto e seu fazer comedido, porém não menos eloquente - assunto também tratado em nossa conversa mencionada no início deste texto. A redução de recursos de Euvaldo se aproxima à linguagem de Melo Neto, a evidenciar-se no poema A Graciliano Ramos:6 - outro tão econômico -, que dedica ao romancista versos como:
com as mesmas vinte palavras
girando ao redor do sol
que as limpa do que não é faca.
A profusão de obras advindas da escassez de "variáveis" afirma a potência infinda da artista. O rigor característico de Euvaldo reitera o valor da arte de se apresentar como tal e não estar a serviço de outros meios. Apresenta-se, portanto, uma produção completamente a par de si.
1. Verso extraído do poema "Graciliano Ramos:". In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p. 311-312.
2. In: Célia Euvaldo / Alberto Tassinari, Marco Silveira Mello; [versão para o inglês] Steve Berg. São Paulo: Cosac Naify, 2008.
3. In: Pintura brasileira século XXI / organização Isabel Diegues, Frederico Coelho; [versão para o inglês] Renato Rezende. Rio de Janeiro: Cobogó, 2011.
4. BACHELARD, G. Introdução à dinâmica na paisagem. O direito de sonhar. São Paulo: Difel, 1986. p. 55-73.
5. BRITO, Ronaldo. Instáveis, incertas, íntegras. Texto para a exposição “Célia Euvaldo _Pinturas”, Galeria Raquel Arnaud, São Paulo, 2018.
6. MELO NETO, op. cit., p. 311.