ANCORAR-SE A PARTIR DO CORPO
A SIM Galeria apresenta a primeira exposição individual do artista norte americano James English Leary (Chicago, EUA - 1982) no Brasil. Ao reunir vinte e seis obras do pintor, a mostra exibe obras produzidas na cidade de São Paulo, em 2017.
O título da exposição – “Como é estranho ter um corpo” – retoma o depoimento de Leary em 2015, durante residência realizada na Rauschenberg Foundation (Florida, EUA). Ao apresentar suas telas, o artista comenta: “minhas pinturas são sobre o quão embaraçoso é ter um corpo”. Em entrevista ao editor da revista eletrônica The Brooklyn Rail, Charles Schultz, Leary pondera a possibilidade da afirmação acerca de sua produção advir dos desafios de parar de fumar cigarros. “Parar de fumar é uma experiência muito desagradável, ela faz com que você deseje desligar seu corpo por seis meses ou mesmo um ano”. Para aqueles que já deixaram algum tipo de adição, é sabido que sentir a falta física de uma substância torna o ser, de algum modo, mais consciente de sua matéria, do que é composto e de seus limites.
Apesar de a declaração ter sido contaminada por um contexto pessoal específico, ela aponta para um destino humano comum: independente dos fluxos da mente, dos deslocamentos ao passado e ao futuro, estamos todos ancorados no presente a partir do corpo. Numa era em que podemos estar virtualmente em todas as partes globo ao mesmo tempo, o corpo é ao menos um rastro de nós mesmos. É inevitável, estamos sempre fisicamente em algum lugar.
Pés, mãos e cabeças habitam as telas de Leary de modo recorrente. Há um escrutínio destes membros que se dá não pelo detalhamento espartano de suas formas, mas pela repetição das figuras. Este retorno recorrente propõe um modo de metabolizar – apaziguar-se com os limites – a simplicidade e, igualmente, a pungência da figura humana. Os corpos – ou partes de corpos – sugeridos pelo artista afastam-se de arquétipos ou de seres mitológicos, crivos de beleza ou sabedoria. Interessa a Leary os agentes cotidianos, mãos e pés ordinários, notados (ou não) ao observar a multidão que transita pelas ruas da cidade de São Paulo ou Nova Iorque, onde reside atualmente. Avançando um passo nesta direção, lhe interessa não só tais contornos humanos, mas a habilidade de nos enxergarmos de modo supostamente claro.
Tal como os limites da figura humana, as fronteiras do plano pictórico são exploradas pelo norte americano. Leary entoa as investigações iniciadas por Lucio Fontana e a Arte Informal – e ramificadas por diversos artistas –, ao espraiar a tela por formas irregulares adicionadas aos limites do chassi. Vale notar que, entre as referências de pesquisa do artista, habita especialmente a artista Elizabeth Murrays (Chicago, 1940-2007) e suas formas despretensiosas, que lhe proveram insumos valiosos no início da investigação. Figuras e formatos nem sempre coincidem, o que insere um terceiro elemento na equação: uma silhueta não nomeada ou inominável. É o caso de Saúde (2017), em que um plano de cor clara se estende sobre parte da “mão” retratada. Seria um plano sobre o plano da parede? Ao mesmo tempo em que a figura salta da parede, ela se achata na própria tela.
As inserções de Leary sobre a tela são comumente carregadas de voltagem humorística. Seja como veículo para a construção da obra ou como ponto de chegada, a comicidade aflora de diferentes modos. O universo do cartoon – vivenciado na juventude – contamina a paleta e repertório formal reduzidos empregados nas telas. De fato, Leary guarda antiga admiração pelos desenhos em quadrinhos. Entretanto, estas formas bem definidas e divertidas repousam sobre fundos monocromáticos, propondo cenários insólitos e talvez prostrados. Este procedimento recorda, aliás, as pinturas tardias de Phillip Guston, por quem Leary preserva grande admiração. Nesta reunião das figuras e fundos pode residir um encontro fundamental na pintura do artista: este equilíbrio sensível entre a comicidade e a melancolia que tentamos manter ao olharmos para nós mesmos. Manifesta-se na obra de Leary uma sátira à interpretação que o indivíduo tem frente a si.
Outro recurso de que o artista lança mão é o uso do spray de tinta em diferentes telas. Em Claro (2017), Oi (2017) e Como se chama isto? (2017), por exemplo, é possível perceber como o spray insere uma gramática totalmente diversa em relação à tinta acrílica sobre a tela. O sombreamento das formas com o spray gera uma sensação de descolamento da figura em relação ao fundo, algo graciosamente antinatural, forçado. O jato de tinta confere a sensação de despojamento, apesar da alta precisão necessária para aplicá-lo.
Ao voltar-nos para as pinturas de menores formatos, é importante levar em consideração os títulos fornecidos pelo artista. Nomes como Posso te dar um beijo?, Sim, adoraria, Desculpa e Como se chama isso? sugerem situações em desenvolvimento, um diálogo já iniciado ou, ao menos, a expectativa da existência de um interlocutor. O espectador é convidado a imaginar em quais circunstâncias estas frases são pronunciadas. Os títulos são intencionalmente não-ilustrativos do que se apresenta na tela: eles propõem um tom para a aproximação à obra.
Por fim, parte das pinturas diminutas exibem as palavras “São Paulo”. Segundo Leary, o nome da capital paulistana não é uma mera legenda – numa chave de redundância dentro da própria pintura – mas um tipo de assinatura, assim como a do próprio artista no verso de cada tela. O artista certifica, por meio da escrita a lápis, a procedência da pintura, suas coordenadas geográficas. Diferentemente de outros trabalhos de Leary, em que as palavras pintadas são munidas de carga pictórica, nestes trabalhos a cidade assina em parceria por nelas investir seus fragmentos e, como ele diz, “merece crédito parcial na autoria”.
Diferentes sintomas apontam como Leary investiga o modo com que a própria pintura é documento de sua própria fatura. Está ali nomeado o esforço empregado em sua realização. Estas operações, somadas à tensão entre humor e melancolia, reiteram a pergunta: a pintura está tentando desmistificar-se ou construir a própria mitologia?
Maria Beatrice Trujillo