Rodrigo Andrade: Diálogo cromático
Diálogo cromático, segunda exposição individual de Rodrigo Andrade na Galeria SIM, reúne duas séries de pinturas estilisticamente distintas cuja correspondência mais evidente se dá por meio do emprego de uma paleta de cores aproximada. Distingue-se, assim, razoavelmente da mostra apresentada na galeria em 2016, que exibiu um corpo de trabalhos único, com foco exclusivo em suas paisagens recentes. Dessa vez, a presente estrutura expositiva proposta pelo artista revela um dos aspectos mais interessantes de sua produção: sua capacidade de negociar os diferentes gêneros da pintura em séries aparentemente contraditórias porém complementares.
De fato, a história, a evolução e a tradição da pintura têm sido alguns dos temas centrais da prática de Andrade desde o início de sua carreira nos anos 1980. Mas não só: também aquilo que poderíamos designar como sua função social parece ser de igual importância. Vale salientar que não se trata aqui de sugerir a existência de um conteúdo narrativo subjacente que justificasse tal função; pelo contrário, ela seria expressa tanto pela materialidade descomedida que acentua seu caráter imanente – de “coisa no mundo” apreendida pela experiência sensível – quanto pela própria posição ocupada por certos tipos de pintura que correspondem, grosso modo, a um lugar comum amplamente compartilhado pelos diversos setores da sociedade daquilo que seria arte. E, embora o repertório pictórico de Rodrigo Andrade não se restrinja somente ao popular, ao pop, ou aos gêneros clássicos, expressões essas que possuem notadamente um apelo mais imediato ao grande público, seu interesse por esse tipo de pintura é sem dúvida recorrente, sobretudo naquilo que diz respeito a seu aspecto “democrático”. Mais precisamente, trata-se de um “desejo de encontrar nesse ideal democrático que une o vulgar e o sofisticado uma fonte de potência artística”[1], mais do que uma vontade de tornar sua pintura acessível ou popular.
Em Diálogo cromático, esse trânsito do artista através de uma suposta gradação hierárquica que se estende desde a pintura inculta até a erudita é sintetizado em dois polos opostos. De um lado, são apresentadas apenas paisagens, sendo que algumas delas são baseadas em pinturas de Ruisdael (1628 -1682) e Courbet (1819 – 1877), dois dos maiores criadores de fórmulas consagradas da pintura ocidental. Apesar de pertencerem a uma chave acadêmica, esse tipo de paisagem hoje adquire um aspecto quase naif devido a sua vulgarização com a gastura do tempo. De outro, obras estritamente abstratas, sendo que a abstração é entendida aqui como expressão paradigmática daquilo que é considerado arte erudita. Ambas as abordagens são recorrentes na prática do artista pelo menos desde o início da década de 2010, quando passou a incorporar o vocabulário visual da arte popular[2] ao mesmo tempo em que seguiu produzindo as pinturas abstratas sobre tela e os blocos de tinta aplicados diretamente sobre a superfície da parede.
Em uma das séries, as vistas bucólicas dos bosques e estradinhas de terra são construídas por meio de camadas espessas de tinta em cores vibrantes, produzindo contrastes inusitados que perturbam a mansidão daquilo que, numa paleta mais naturalista, seria apreendido como algo inofensivo. É que há nelas uma certa turbulência, ou até mesmo algo de violento, um certo desconforto que emerge da materialidade e do colorido exagerados e que termina por distanciá-las de uma pintura simplesmente bela, agradável ou palatável. Como num filme de David Lynch ou - para citar uma referência empregada anteriormente pelo próprio Andrade - na pintura de Ranchinho, sob uma aparente normalidade há algo que abala a ordem das coisas. Há nessas obras, portanto, uma espécie de negociação de desejos divergentes: por um lado uma vontade de democratizar a pintura por meio da escolha de uma temática e estilo populares e, por outro, a subversão disso através do estranhamento causado por escolhas formais que ultrapassam o limite do aceitável. Além disso, as paisagens que compõem a série foram criadas a partir de uma técnica de estêncil, o que permite a repetição de imagens em diferentes combinações cromáticas. Essa serialização remete inevitavelmente às famosas serigrafias de Andy Warhol (1928-1987), agregando-lhes uma qualidade pop, embora no caso de Andrade cada pintura seja finalizada por meio da aplicação de pinceladas que restauram em certa medida seu caráter individual.
O interesse do artista em mobilizar e negociar desejos conflitantes na pintura fica ainda mais claro ao observarmos a outra série apresentada nesta exposição, composta de um conjunto de telas abstratas nas quais retângulos de cor se articulam ortogonalmente sobre a superfície. O contraste entre os dois gêneros explorados pelo artista é o que chama a atenção inicialmente, mas logo se percebe a correspondência cromática entre as duas séries, explicitando a relação entre elas. É como se toda a turbulência expressiva dos gestos contidos na série das paisagens fosse subtraída e organizada em planos de cor que sintetizam uma pesquisa acerca dos aspectos formais da pintura. Além disso, a correspondência entre as séries obedece a um sistema criado pelo artista, segundo o qual as paisagens são realizadas em apenas três ou quatro cores e as abstrações sempre em três cores. Mas, assim como em toda a obra de Andrade, há mais que isso.
Acontece que a pintura é um meio que, ao longo dos séculos, já vem carregado de uma história e de uma tradição que são impossíveis de serem ignoradas. Rodrigo Andrade é um entusiasta da pintura, como pode ser observado através das múltiplas referências empregadas por ele ao longo de uma trajetória de quase quatro décadas. Não há portanto nenhuma ingenuidade na maneira com que mobiliza e confronta os códigos e convenções característicos dessa expressão artística; pelo contrário, possui plena consciência do significado histórico desses códigos e convenções. Nesse sentido, é até mesmo natural que empregue estilos aparentemente excludentes, pois sua pesquisa se debruça justamente sobre a questão “o que é a pintura?” ou “quais são suas possibilidades nos dias de hoje?”. Em outras palavras, parece ser justo afirmar que interessa-lhe muito mais a ideia de procedimento do que a fidelidade a um único estilo, o que, paradoxalmente, aproxima o artista que flerta com a arte popular do artista conceitual. Em última instância, é justamente esse movimento constante de conciliação de desejos conflitantes que permite que o artista transite entre a alta e a baixa cultura, entre a pintura clássica e a moderna, produzindo, por fim, uma obra que é absolutamente contemporânea.
[1] Declaração do artista à autora, julho de 2019.
[2] Na mostra Jogo dos sete erros (Galeria Estação, São Paulo, 2012), Rodrigo Andrade realizou cópias de obras do artista popular Ranchinho (1923-2003) que foram exibidas junto às obras originais do artista. Outro caso exemplar é a exposição Praça da República (Ateliê 397, São Paulo, 2015), com curadoria de Thais Rivitti, na qual produziu uma série de trabalhos inspirados pelas pinturas de artistas sem formação acadêmica que são tradicionalmente comercializadas nessa praça central da cidade de São Paulo. Caberia citar, ainda, a intervenção realizada no Bar Alvorada, no bairro de Santa Cecília, em São Paulo (2001), a qual, embora tenha incluído apenas seus característicos blocos de tinta abstratos aplicados diretamente à parede do estabelecimento, já denota uma vontade de democratização da pintura ao trazê-la para uma situação cotidiana.
Kiki Mazzucchelli