Diálogos construtivos no Brasil: passado e presente
Felipe Scovino
O conceito dessa exposição parte de dois pressupostos. O primeiro é fomentar uma discussão, a partir de duas gerações de artistas (a primeira baseada em fins dos anos 1950 e começo dos 60, e a outra que tem sua pesquisa começando por volta dos anos 90), sobre como a linguagem construtiva, tão importante para as bases do conceito moderno nas artes visuais nacionais, se comporta em suas mais distintas vertentes na contemporaneidade. Para além de uma morfologia que pode ser encontrada nos diálogos entre as duas gerações, como são os casos das setas de Raul Mourão e a pesquisa geométrica de Geraldo de Barros que podem ser deslocados para as pinturas de Nassar, ou ainda a forma como Palatnik e Patricio nos mostram a instabilidade do plano a partir de elementos que se confundem com a geometria mas que são encontrados em mercados populares, a mostra exibe uma atmosfera de renovação do pensamento construtivo.
O segundo ponto que une esse conjunto de artistas é a forma como cada um deles, à sua maneira, opera simbolicamente com a rua. Volpi ficou internacionalmente conhecido pelas fachadas geométricas de casas e como a natureza poderia ser inventada e tornar-se geometrizante. Abraham Palatnik, Athos Bulcão e Geraldo de Barros realizaram inúmeros projetos que tinham a rua como inspiração. Bulcão tem Brasília como seu plano de ação para a saída da arte dos museus e galerias para a vida comum do cidadão num diálogo altamente pertinente com a arquitetura. Athos consagrou-se como o interventor artístico na arquitetura. Parceiro de Niemeyer, João Filgueiras Lima, Milton Ramos, entre outros, explorou as potencialidades da azulejaria e da pintura em sua trajetória. Ajudou a criar o “muralismo com azulejos” no Brasil, construindo intricados quebra-cabeças, explorando a visualidade das composições abstratas e permitindo uma abertura orgânica na execução das peças, já que Athos deixava sempre a critério do operário encarregado a aplicação dos azulejos na construção dos painéis. Perde-se o equilíbrio formatado, o que passa a valer é o livre arbítrio, a desordem, o desejo pessoal, o aleatório e o acaso na construção poética da obra artística.
Barros e Palatnik, o primeiro em São Paulo e o segundo no Rio de Janeiro em momentos semelhantes, envolvem em seus projetos conceitos do design, da produção de mobiliário e da pintura. Ambos tornando a arte mais democrática e visível, confundindo-a com o cotidiano e o uso que fazemos dos objetos que estão a nossa volta. Cada um deles funda em meados dos anos 1950 e 60, fábricas (a Hobjeto, no caso de Barros, e a Arte Viva, de Palatnik) que se dedicam à produção de mobiliário, fundindo o dado artesanal do artista plástico com a produção seriada de uma fábrica. Barros é um dos artífices, ao lado de Waldemar Cordeiro, do grupo Ruptura, em São Paulo. Um dos primeiros núcleos de artistas ligados ao pensamento das linguagens construtivas, o Ruptura lançou as bases da pesquisa abstrata no país juntamente com o Grupo Frente, baseado no Rio. Sua obra possui uma complexa e frutífera gama de pesquisas: começa com as fotografias inovadoras da série Fotoformas, em 1949, explorando a densidade da luz e da sombra e construindo paisagens construtivas a partir de elementos da cidade, passa pelas pinturas concretas do período do Ruptura, avança por uma pesquisa pela Pop Arte nos anos 1960 e 70 ao mesmo tempo em que se dedica aos projetos da Hobjeto e Unilabor (outra ação envolvendo mobiliário, arte concreta e indústria), volta à pesquisa concreta nos anos 80 e nos últimos anos de vida dedica-se ao projeto Sobras em que a partir de fotografias de familiares e de viagens, realiza intervenções como recortes, inclusão e exclusão e sobreposição de fundos, pessoas e objetos, espaços que passam a ser preenchidos por recortes em branco ou preto. Uma série que alia a melancolia à uma profunda singeleza e poesia.
A rua, singularmente, é um dos fios condutores mais potentes da obra de Raul Mourão. Ela é tema, símbolo e mote em grande parte de suas obras. A nova série Fenestra (2015) cria um diálogo pertinente com as Grades (conjunto de fotos realizado entre as décadas de 1980 e 90). É impressionante perceber que em ambos os casos o diálogo entre arte e política não é fugaz e os sintomas dos tempos em que essas obras foram criadas permanecem os mesmos. Se os anos 1980/90 foram marcados por um aumento da violência nas grandes cidades brasileiras, hoje essa circunstância não é diferente. O medo e a suspeita frente ao outro pouco a pouco ganhavam contornos que a própria cidade simbolizava. O espaço público era absorvido de forma totalitária pelo privado, e um exemplo disso foi o rápido crescimento das grades e equipamentos de segurança avançando sobre as calçadas e demarcando os espaços de prédios. Ou ainda os cacos de vidros sobre as muretas. Grades é fruto desse tempo, e Fenestra, com suas janelas e uma atmosfera sombria, suja, ruidosa prolonga esse estado de atenção. De forma ácida, Raul expõe o que acontece na rua e critica uma espécie de espírito coletivo que desvirtua ou confunde os significados de território, propriedade e espaço público. Por outro lado, seus Balanços expõem o quanto o cinetismo pode variar entre um aspecto lúdico e a mais alta qualidade da tradição escultórica brasileira. Relativizando o peso e a dimensão do ferro, essas obras conseguem transmitir uma qualidade mais suave do material ao mesmo tempo em que não é abandonado o caráter de densidade que sobrevoa o aspecto urbano do nosso cotidiano.
Já em Bechara o fato de substituir a tela branca por uma superfície suja, poeirenta, impregnada de história, que são as lonas usadas de caminhões é o primeiro passo para entendermos o aspecto experimental de sua obra e a forma como cria mais uma variável para esse acento geométrico na arte brasileira. O artista sobrepõe camadas de tempo ao fazer uso de processos de oxidação daquele material. Bechara incorpora a morosidade da oxidação como condição para a aparição do aleatório. As modificações que ocorrem – marcas, texturas e manchas – tecem uma sobreposição de volumes, cor e textura. São linhas construídas ao acaso, signos de memória, que passam em um gesto poético a serem incorporados como pintura. Em suas obras mais recentes nos deparamos com caixas de madeira cujo interior é formado pela sobreposição, com pequenos intervalos, de placas de vidro. Sobre as placas há a aplicação de tinta spray de diferentes cores que, como um pincel, imprime um livre jogo de formas geométricas. No fundo de algumas dessas caixas, placas de madeira cortadas, que acentuam não só o legado construtivo na obra de Bechara mas também a pesquisa sobre cor e planaridade que tanto interessa à sua produção.
José Patricio traz um elemento popular – os botões de roupas – que é largamente encontrado nos centros das cidades e que acaba por fazer parte do nosso cotidiano. É perspicaz que o índice de Patrício é o jogo: através de botões, dominós, lápis, pregos, ele constrói um circuito interno de ritmos, pausas e acelerações. Desde os anos 1980 experimentando novas apropriações para as linguagens construtivas, esse artista pernambucano construiu um padrão geométrico para suas obras, e o fato de ter a espiral como a figura que promove os sentidos centrípeto e centrífugo produziu dois efeitos: a desorientação óptica e uma síntese do tratamento das possibilidades gestálticas da figura/fundo, uma relação na qual a figura que fundamenta o quadro vai aumentando ou diminuindo progressivamente - pois sua obra concentra essa ambiguidade visual à medida em que o espectador escolhe por onde quer começar a leitura do jogo de disposição das peças, pelo centro ou periferia da obra - concentrando maior energia e criando a ilusão de expansão e rotação dos elementos. O acúmulo e a forma rearranjada das peças formando um jogo geométrico, óptico e altamente estimulante coloca o construtivismo em um novo patamar e nos ajuda a entender esse senso de ampliação da linguagem artística.
Já Emmanuel Nassar expõe uma espécie de homenagem cínica e vigorosa às linguagens construtivas. Sua obra tem as cores, as formas e a história da cidade, mas substancialmente a perspicácia daquele que está atento aos movimentos e sutilezas da rua. As chapas têm o som e a fúria da cidade. É impressionante como Nassar ao coletar, reprocessar as imagens dessas placas com a inserção, em alguns casos, de pequenos detalhes transmite a elas não mais um caráter de descarte mas, pelo contrário, de impressionante altivez, conectando-as a um sério e pertinente diálogo com a história da arte brasileira. Estão contidas nessas placas uma plástica típica do construtivismo, a densidade urbana, o caos, a invenção brasileira, e a sintonia perfeita entre cor, forma e processo artístico. Seus desenhos e pinturas exibem um componente malicioso que mescla desde signos da história da arte a índices que revelam uma fina ironia ou temas que de forma alegórica remetem ao construtivismo como é o caso de Mouse Trap (2014). É nesse ambiente hostil e trágico, e ao mesmo tempo efervescente e satírico, que sua obra, como um pêndulo, opera.