A/Objeto
Abjeto: arremessado para baixo, algo soterrado. Objeto: lançado para frente, o que se apresenta diante de si. Abjeto objeto, em sua etimologia, fruto de um duplo arremesso: aquele que concretiza uma coisa em um dado contexto e aquele que aponta para o que estava isolado por perturbar a aparente ordem de um certo sistema. São estas duas atitudes que a produção recente de Bruno Dunley tenta colidir e deixar em atrito.
O caráter objetual da pintura, consolidado ao longo dos séculos, é o que garante a esse meio sua identidade como fenômeno sensível móvel e autocontido, cujos significados estruturam-se pelas propriedades internas do quadro: sua escala, sua relação com suas bordas, seus signos, sua matéria cromático-luminosa e seus índices de fatura e procedimento pictórico. O funcionamento dessa epistemologia sempre interessou Bruno Dunley, preocupado não apenas em compreendê-los, como em recombiná-los em pinturas que evidenciam suas similitudes e diferenças com outros regimes sistêmicos de apresentação visual de ideias, como gráficos, diagramas, manuais de instrução e alfabetos. Nesse sentido, muito da pintura de Dunley assemelha-se a estudos combinatórios de modos de lançar um signo diante de outrem. As pinturas que recebem o visitante desta exposição, Sol (2017) e No lugar em que já estamos (2014), são exemplos claros dessa atitude.
Já a abordagem do abjeto passa por uma operação mais esquiva. As ideias e formas que são lançadas para o campo da abjeção vão parar ali porque sua presença perturba a autoimagem dos sujeitos e da sociedade em que vivem. Apesar do dicionário associar o abjeto ao que é vil ou perverso, ele é na verdade apenas o que perturba e precisa ser retirado da linha do olhar. Nada que fica escondido, porém, deixa de existir – e sempre houve alguma forma de dar lugar para isso, desde os rituais ancestrais, até a psicanálise, passando pela escrita escatológica. A produção atual de Bruno Dunley, artista particularmente sensível ao que há de abjeto e obsceno nos tempos atuais, demonstra interesse por continuar essa linhagem, atualizada pela difícil tarefa de produzir algum abalo sensível numa era supersaturada de todo tipo de imagens.
Sua série Bestiário, introduzida aqui pela obra A negociação (2017), é a que mais explicitamente enfrenta esse problema. É importante lembrar que uma catalogação contemporânea de monstros e feras poderia começar antes mesmo de recorrermos à imaginação fantástica dos nossos artistas: bastaria abrir os jornais, escolher alguns rostos dentre as muitas figuras públicas grotescas que falam em nosso nome e, se for necessário aumentar ainda mais a náusea, justapô-las aos muitos comentários deixados por usuários rancorosos em sites de notícias online. Quer dizer, a obscenidade ética vigente faz da sátira uma ferramenta acessível e eficaz. Porém, para Bruno Dunley, importa desviar da sátira e procurar algo que, como abjeto objeto, nos desorienta e dificulta qualquer reconhecimento imediato, por resistir à identificação.
Para isso, Dunley ensaia figuras humanoides bizarras, signos de flagelação e/ou de erotismo desviante, algo reminiscentes de representações clássicas do inferno e de personagens picassianos. Sua própria fatura evita a deselegante elegância de parte da pintura contemporânea que faz da crueza uma distinção estilística. Como se vê adiante, em Lambisque (2017), da mesma série, a qualidade pictórica da tela quer se aproximar do que foi recalcado na própria pintura: cores brutas e histriônicas, tratamento desigual da superfície e uma sintaxe conflituosa entre as camadas e elementos compositivos. É a própria apresentação objetual da pintura que assim ganha caráter abjeto: demasia de vitalidade transformada em monstruosidade.
Todos esses adjetivos podem fazer parecer que se trata de uma mostra de horror, mas não é bem assim. É a vida coletiva de nossa sociedade que se parece com um filme de tragédia e, no contraplano, o artista procura revolver as propriedades racionais e lógicas usualmente associadas à sua produção. Coloca sua pintura em crise para que ela possua peso em um mundo em crise.
É por aí que nasce a instabilidade das demais pinturas reunidas nesta mostra, mesmo as que não trazem as figuras do bestiário. Formiga e Dilúvio II (ambas de 2018), por exemplo, são imagens cruas, apesar de evidentemente muito cozidas. Quer dizer, são obras ásperas e de arranjo instável, ainda que tenham passado por muitas camadas e recursos de construção. Nelas, a tinta metálica e os matizes cintilantes perturbam a planaridade da tela e somam-se à volumetria obtusa dos acúmulos de tinta que irrompem aqui e ali. Uma cor, especialmente, marca presença em diversas das obras e cumpre o papel de quebra de decoro pictórico, excessivamente chamativa para sua própria iridescência saturada: o laranja. A massa bruta de laranja, apresentado em blocos cromáticos sem nuances, interrompe o plano pictórico, produzindo um efeito similar ao alcançado pela pintura fauvista, depois que superou a demarcação linear dos contornos do cloisonnisme de Paul Gauguin e manteve sua abordagem expressiva das cores.
Ao contrário da pesquisa modernista, entretanto, Bruno Dunley opera, como outros colegas de sua geração, por problemas segmentados: ao invés de procurar estabelecer um sistema compositivo que abarque toda a produção de seu ciclo atual, ele aborda cada tela como um sistema independente, que elabora e desenvolve suas regras caso a caso.
Uma das últimas obras encontrada pelo visitante, Contrato (2017), demonstra o modo como cada pintura estrutura-se como um sistema equilibrado e, ao mesmo tempo, pode religar as pontas da argumentação aqui desenvolvida. O elemento que protagoniza a pintura é um aparentemente inofensivo fluxograma vazio – simples arranjo de setas e caixas de texto em branco. Parece ser uma continuidade do interesse do artista pelos modos de apresentar como signo visual um conjunto de informações e ideias. 2017, no entanto, foi o ano em que um outro fluxograma protagonizou inúmeros debates na ópera-bufa da política brasileira, apresentado como suporte para uma argumentação que deveria ser técnica e factual, porém estava repleta de presunções e convicções enviesadas. O próprio diagrama, assim, passa a ser uma besta fera atual, que o artista materializa em sua fatura desnorteante, manchada, cintilante e plena de atritos internos.
Paulo Miyada
Abril de 2018