E se a Lua for embora, o céu entenderá
Conduzindo o olhar por um grupo de trabalhos que flertam com o gênero da paisagem e da natureza-morta, Felipe Suzuki impõe um estado de suspensão temporal onde memória e atualidade se dissolvem. Paira sobre a pele aveludada dos pêssegos, das pétalas de suas flores e do campo aberto de terrenos a esmo uma fina camada leitosa que dilata a apreensão da cena enquanto convida o olho a passear pelas rachaduras e caminhos da tinta. Se outrora a semelhante técnica do sfumato fora utilizada por mestres renascentistas para criar o artifício de uma “perspectiva aérea”, replicando as qualidades físicas da paisagem que se perde no horizonte, o uso adensado proposto por Suzuki inverte o sentido do realismo ótico para propor, em seu lugar, cenas movediças, onde a instabilidade da representação do objeto no meio pictórico mais se assemelha a sonho ou miragem.
Produzidas mediante os usos de uma paleta de cores reduzida, em que o preto de marfim, o branco de titânio, o amarelo ocre e o vermelho sienna queimado são misturados e revirados ao avesso para a investigação de seus semitons e combinações, o artista produz um sistema que deriva de uma estrutura inicial. No cosmos que rege a sua produção, cria uma ordem de mônada, conceito-chave sugerido pelo matemático e filósofo alemão Gottfried Wilhelm Leibniz. Revisitado hoje por sugerir a noção de relatividade antes mesmo de Albert Einstein, fundamentou uma teoria onde a mônada seria uma substância simples, sem partes, indissolúvel e indestrutível; como um mundo distinto, à parte, próprio - mas também como unidade primordial que tudo compõe. Entre suas variações, cada uma delas guardaria consigo a ordem do todo e das relações de interação umas com as outras. Tal compreensão atomizada da existência serve para a elaboração de uma realidade em que a separabilidade é insustentável, pois cada parte perturba o funcionamento de um corpo maior, regido pela harmonia.
Sob esta percepção, poderíamos inferir que a composição, para Suzuki, é resultado de uma equação entre cada uma das quatro cores de sua paleta. Se em tal afirmação a relação entre combinação e variabilidade adquire seu grau de veracidade por uma crença total na virtude técnica de sua pintura, a mesma cairia em amarga objeção pelo fracasso em submeter uma máquina a reproduzir uma obra de equivalente qualidade. Há um outro elemento: integra à pulsão de criação de Suzuki a sua relação própria com o mundo, que apreende o entorno sem se ater à sua aparência estática, mas busca na realidade vivida a sua condição fugidia. Este é o poder de suas composições – cristalizadas sobre leves e demoradas pinceladas, seu tempo se paralisa na passagem dos instantes, ínfimos em sua diferença, em que se abre, na impossibilidade de um determinismo espaço-temporal, uma janela de fuga.
Há em adição, nesse jogo de pesos e contrapesos, um elemento que foge à precisão: um princípio de incerteza, em que a inefável razão de ser é abraçada em favor da manutenção do desconhecido. Nessa misteriosa profundidade – conhecidas pela cultura chinesa e nipônica como Y?gen – o espaço da incompletude, do vazio, desenha um horizonte de eventos onde aquele que vê é convidado não apenas a completar seguindo o rastro da sugestão, mas também a habitar o abismo em um encontro consigo. Em um gesto dialético de uma radical alteridade, Suzuki cria cenários lacunares, por vezes fragmentados, que refletem o mundo não em sua verossimilhança, mas na indistinção entre o real e o imaginado.
Na redoma de ocres e rosados do artista, o céu pode ser um círculo, a névoa, uma linha, uma faísca de luz. É também a fruta, a fruteira, o copo meio vazio, meio cheio. Pode vir a ser a casa, ou a figura que transita em seus aposentos. É tudo isso e não apenas um deles; nesta economia pictórica, tempo é massa em transformação. E se a lua for embora, o céu entenderá, pois outro corpo há de tomar o seu lugar.
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A sinestesia do silêncio
Suzuki explora a pintura a partir do instante e das múltiplas relações que ela estabelece com o espectador, criando profundidade e intensidade a partir do gênero da natureza-morta. A delicadeza se revela na sofisticação cromática e na representação dos objetos, enquanto a brutalidade surge na resolução prática de molduras feitas de pregos, unindo elementos antagônicos. Essa fusão captura as sutilezas do cotidiano, cristalizando-as em uma linguagem pictórica que transforma cenas comuns em representações carregadas de sensibilidade e nuances.
Mesmo que, por vezes, figurativas, suas pinturas flertam com o abstrato devido ao jogo de cores que emplaca. A diversidade cromática que enxergamos em cada tela é, na verdade, resultado de um domínio técnico, permitindo que o artista manipule nossa retina ao fazer misturas com somente quatro tons. É nessa busca em expressar profundidade e contemplação que o artista pratica um resgate técnico clássico, em que a cor é uma sugestão e a singularidade é caracterizada por uma abordagem introspectiva e minimalista.
Sua pintura é um convite ao silêncio, ao tempo pausado, onde cada elemento parece ser colocado com uma precisão pensada, dando ao espectador a chance de se perder nas sutilezas de suas composições. Ao mesmo tempo, carregam uma intensidade que emerge da simplicidade, convidando o público a contemplar o impacto do momento e da percepção, características tão presentes em sua produção.
Lucas Albuquerque e Luana Rosiello