Geometria em síntese
As experiências construtivas no Brasil têm sido objetos constantes de exposições, livros e ensaios nos últimos tempos. Coloco-as no plural porque são inúmeras as especificidades desses trabalhos que foram desenvolvidos com maior densidade entre os anos 1950 e 1970. Definitivamente não houve um projeto construtivo, mas uma vontade plural em rever os caminhos da arte. Passado o modernismo e o seu desejo de construir e discutir uma identidade nacional pautada no indivíduo antropófago que se voltava simultaneamente às suas origens, ao contágio estrangeiro e ao tempo presente, as experiências construtivas se veem localizadas no bojo de um tempo, que, por um lado, se constituía de forma rápida, dinâmica e desenvolvimentista, e, por outro, era marcado por demandas sociais e políticas, envolvendo especialmente o que poderíamos definir como políticas do corpo – o movimento hippie, o Flower Power, as Panteras Negras, o maio de 68, movimentos reivindicando o direito das mulheres, etc., se constituem no panorama desse período. É o ambiente para a aparição do neoconcretismo, por excelência.
Contudo, no início dos anos 1950, em meio à construção de Brasília, ao plano de Metas de JK, à industrialização e ao desenvolvimento da ciência, no plano das artes, em específico, é o momento em que a institucionalização da arte constrói uma nova ideia de espaço moderno, como pode ser observado na fundação dos museus de arte moderna no Rio e em São Paulo, além da criação do MASP e da Bienal de São Paulo. Havia um desejo de mudança pautado na chegada do abstracionismo no panorama da produção das artes plásticas e de inserir o país dentro de uma projeção internacional, especialmente quando a Bienal foi instituída. Por falar em campo político das artes, nota-se que todas as obras apresentadas foram produzidas após a realização do Salão Preto e Branco, que ocorreu em 1954. Ele foi um protesto contra o descaso do governo frente às necessidades de materiais adequados à nossa produção visual. A insatisfação dos artistas – tendo à frente Djanira, Iberê Camargo e Milton Dacosta - tem origem em 1952, quando a Carteira de Exportação e Importação do Banco do Brasil cassa as licenças de importação de tintas estrangeiras, com a justificativa de se encontrar a indústria local apta a satisfazer as necessidades dos artistas. O resultado foi a realização do Salão Preto e Branco e pouco tempo depois a possibilidade da geração seguinte de artistas – os concretos e neoconcretos – ter as tintas importadas e uma nova tecnologia de produção ao seu dispor.
O que essa exposição quer destacar não é só o papel de destaque que o pensamento construtivo exerceu nas artes visuais brasileiras (e o seu prolongamento, com nuances e especificidades próprias, no contemporâneo), mas também uma espécie de contraponto ao aspecto solar do projeto moderno brasileiro. Ao escolher obras produzidas em preto e branco e em sua maioria realizadas entre os anos 1950 e 70, destacam-se a ideia funcional e projetual da arte; a associação cada vez mais substancial, no início dos anos 1950, entre as experiências construtivas nas artes plásticas e o campo da fotografia (em especial, a presença dos olhares sensíveis e potentes de German Lorca, Geraldo de Barros, José Oiticica Filho e dos desenhos construtivos constituídos e observados a partir de ações e percepções singelas do cotidiano); e uma austeridade e complexidade próprias nessa escolha minimalista por parte dos artistas. Em relação a essa característica, cito o caso exemplar e pioneiro das Fotoformas, de Geraldo de Barros. A fotografia deixa de ser “o espelho da realidade” para se tornar espaço de invenção. A linha não é mais uma linha, nem o plano é mais um plano, distorcendo Theo van Doesburg e sua teoria da arte concreta. Barros funde fotografia e pintura, invenção e realidade.
Não há uma preocupação imediata com questões de identidade nacional nesses compromissos estéticos, mas um anseio legítimo e autoral de investigar a forma e a função do objeto de arte. Seja experimentando as novas percepções ópticas do objeto, seja investigando e ampliando as fronteiras da pintura e da escultura, esses artistas tinham um interesse em comum: associar de forma ainda mais duradoura a arte e o cotidiano. Portanto, a passagem do plano ao espaço, valorizada por uma crítica mais formalista a respeito dessas produções cinéticas e concretas, pode ser entendida também como uma perspectiva fundamental para se entender a ligação de artistas como Geraldo de Barros, Hércules Barsotti e Willys de Castro com as experiências da cidade, em especial suas produções de cartazes e móveis.
A escolha de obras fora desse arco temporal – décadas de 50, 60 e 70 – nos mostra o quanto esses gestos e ideias foram definidores de uma nova forma de pensar e produzir arte. Obras como as de Amalia Giacomini, Daniel Feingold, Maria Laet e Ricardo Alcaide têm as linguagens construtivas como referente, mas, acima de tudo, penso que elas mobilizam um repertório de delicadeza, suavidade e harmonia que leva o entendimento sobre o construtivo para outras fronteiras e percepções. Paulo Roberto Leal alia o silêncio do branco a uma forte tensão e suavidade com a ideia de pintura. Eduardo Coimbra é mais um dos artistas que não realizam uma adequação contemporânea do legado construtivo, mas investigam esse signo a seu modo, aproximando arte, arquitetura e cidade. Suas obras nos parecem uma visão aérea de um aglomerado de elementos cúbicos e planos superpostos que remetem à urbe. As presenças de Mira Schendel, com seus estudos para os Sarrafos, e Wanda Pimentel, artistas com estudos transversais sobre o construtivo, refletem esse estado de invenção que a exposição elabora e a forma como linguagens conceituais se aproximaram das tendências construtivas.
Felipe Scovino