Uma coisa que fica entre
Nos anos 1957 e 1958, Hélio Oiticica (1937-1980) produz uma série de guaches sobre cartão denominada por ele, nos anos 1970, ‘Metaesquemas’. Essas estruturas, formadas por gráficos ou placas de cor, são perturbadas pelas operações realizadas na superfície que imprimem movimento e ambiguidade ao espaço pictórico. Nas palavras do artista – que elabora teorias, conceitua e pensa a própria obra – ´Metaesquema´ é “esquema” (estrutura) e “meta” (transcendência da visualização), uma coisa que fica entre[i].
Nestas produções artísticas, entre a ruptura da estrutura formal da composição pictórica e o vir a ser do espaço extra-pictórico ambiental, reside um hiato. Na abertura, fenda, lacuna, está a interrupção do padrão de um acontecimento contínuo para a confirmação da continuidade dos processos ambíguos. Em um gerúndio incessante ‘friccionando’ e ‘tensionando’ ambiguidades - ordem-desordem, vertical-horizontal, cheio-vazio, fundo-figura, vivo-morto, espaço-tempo -, abrem-se perspectivas para a posterior arte ambiental. Essa noção de arte ambiental poderia ser compreendida como ‘arte na situação´, quando todo o conjunto perceptivo sensorial (corpo) domina a experiência para além da supremacia do visual[ii].
Na exposição coletiva Hiato, a partir dos gatilhos disparadores de Hélio Oiticica, as produções de Juan Parada, Lais Myrrha, Ricardo Alcaide e Sam Moyer são fios soltos do experimental que brotam para um número aberto de possibilidades e interpretações.
Juan Parada (1979) e Hélio Oiticica, em suas práticas, compartilham investigações sobre tempos de duração. Nas reflexões iniciais de Oiticica, amparadas em teorias bergsonianas, está o interesse pela relação espaço-temporal da obra de arte e seu tempo interior; para ele manifestada através da cor (luz). Já nas obras Elogio aos Microseres (2018) e Elogio à Água II (2018), de Parada, está presente o tempo de ação; expresso na condição cronológica intrínseca da construção das camadas de tempo da ilha de Superagui, no litoral do Paraná, que se encontram condensadas no objeto artístico e em seu processo de construção-impressão. Juan Parada impulsiona a fusão entre passado e presente e oferta tempo de desaceleração para a percepção dessa ‘transição turva do não classificável’, nas palavras do artista.
Em Cálculo das Diferenças (2017), Lais Myrrha (1974) registra a vocação desconstrutiva dos elementos construtivos: a tomada de posição crítica da artista implica em inevitável ambivalência. Na instalação, configurada por quatro módulos de vidro de igual tamanho, habitam matéria preservada e matéria arruinada – entre tijolos inteiros, tijolos quebrados, madeira inteira, madeira queimada. Myrrha desestabiliza as convenções materiais libertando-as dos seus confinamentos e desvelando, assim, a desordem frente à suposta ordem – e verdade - que reside em projetos construtivos (e arquitetônicos também). Entrecaixas - que armazenam material bruto em estado de devir – ou caixões – onde jaz o cadáver do que não foi – a artista aponta para o estado transitório, impermanente e mortal. Das coisas, inclusive.
Especialmente interessado pelas relações suscitadas por Hélio Oiticica acerca das problemáticas urbanas, Ricardo Alcaide (1967) propõe a instalação inédita Sunset (2019). Rompendo a regularidade rigorosa da grade - esse elemento domesticador urbano que é barreira entre o público e o privado - o artista insere objetos flutuantes: tijolos baianos pintados em sete cores sequenciais indicando a transição do pôr-do-sol, entre o dia e a noite. Na construção dialógica com matrizes neoconcretas, tanto Sunset quanto a obra Progressive (2016), ativam a memória viva do formalismo modernista, em um presente resistente, que tem sua estabilidade friccionada e está em constante limiar da queda.
As obras Grid for Hélio (2019) e Ry?an-ji Path (2019), de Sam Moyer (1983), colocam em campo ampliado o espaço pictórico e o espaço escultórico, em simultâneo. Associando diferentes materiais – concreto, mármore, marmorite, tela pintada, painel de MDF - com suas rugosidades distintas, a artista adere um ambíguo peso-leve à experiência visual, expandindo-a. Na linguagem abstrata indefinida entre pintura e escultura, a materialidade minimalista proposta por Sam Moyer está em híbrido equilíbrio dinâmico.
O conjunto de obras que configuram Hiato abrem-se às perspectivas múltiplas ao distanciarem-se de enquadramentos rígidos das linguagens tradicionais, assumindo ambiguidades e indeterminação. No texto Brasil Diarreia (1970), Hélio Oiticica aponta para a afirmação do experimental, alertando que pensar em termos absolutos é cair em erro. ‘O que não significa que não se deva optar com firmeza: (...) assumir ambivalências não significa aceitar conformisticamente todo esse estado de coisas; ao contrário, aspira-se então a colocá-lo em questão’. Na obsessiva dissecação do espaço posto em questão, no indefinível entre desse grande labirinto contemporâneo, moldam-se transformações. Como afirmou o artista, em ‘Posição e programa’ (1966): ´só derrubando furiosamente poderemos erguer algo válido e palpável: a nossa realidade’.
Michelle Farias Sommer