O pensamento não linear, intuitivo e quase abstrato é um procedimento na poética do artista Hugo Mendes. O interno torna-se visível, a botânica se desvela, culminando na criação de um universo próprio fabuloso, em que há integração entre corpo, arte e natureza, em uma construção cromática sutil que permeia suas pinturas e esculturas. Em “Receptáculo”, Mendes reverbera conhecimentos guardados da natureza, aproveita as circunstâncias do tempo, o equilíbrio entre as composições, uma mescla entre brutalidade e delicadeza orgânica. Sua produção é a persistência da vitalidade em um espaço suspenso entre o que é natural e o que lúdico.
A discussão acerca do ambiental tomou protagonismo na contemporaneidade, artistas envoltos pela temática nos fornecem suas perspectivas sobre as transformações de elementos naturais e orgânicos. Na mostra, o conjunto de trabalhos opera no espaço expositivo como uma estrutura de germinação que se metamorfoseia em uma representação de algo desabrochado, em um estágio desconhecido, em que percebemos a parceria equilibrada entre elementos industriais sintéticos e os orgânicos.
Para grandes pesquisadores contemporâneos, nossa sociedade como um todo encontra-se em uma crise análoga, uma crise de percepção, haja vista a tentativa de aplicação de conceitos mecanicistas cartesianos a uma realidade que não pode ser entendida sob essa chave. Hoje tudo está interligado, desde fenômenos biológicos, psicológicos, sociais, ambientais e claro, os artísticos. O caminho projetado é uma visão sistêmica da vida, em que mente, consciência e evolução estão intrinsecamente integradas a economia, tecnologia e a arte.
Rizoma é um termo originário da botânica, apropriado pelos filósofos Deleuze e Guattari para analisarem a sociedade, o conhecimento e as relações a partir de fluxos e sobreposições. Nessa estrutura não há raiz ou centro, os brotos vão se ramificando de qualquer ponto, sendo simultaneamente talo, ramo e raiz. O rizoma é como um mapa conectável, reversível, desmontável em que existem infinitivas entradas e saídas. O mergulho na exposição de Hugo Mendes é uma experiência rizomática, não há começo, meio e fim, há ramificações que vibram em um mutualismo.
Uma perspectiva ecológica rompe com a lógica de tratamento do ambiente, como peças separadas a serem exploradas por grupos diversos de interesses. Esse pensamento integrativo está profundamente presente em Mendes, que se apropria de partes de madeira, que já chegam ao ateliê com uma vida prévia, uma vida vegetal secreta. Partindo dessa ressignificação, o artista utiliza a forma natural para forjar seu trabalho, em um processo dinâmico de coautoria, em que seus componentes estão interligados através de trocas cíclicas de matéria e energia, a madeira determina o tamanho e desenho do trabalho, validando um respeito pelo elemento.
Seu corpo de trabalho evoca um mistério acerca de sua feitura, gera curiosidade de quais métodos escultóricos foram realizados, tamanha atenção aos detalhes e singularidade. No entanto, os trabalhos dispensam explicações: apreciamos a concavidade da pérola de resina que se forma de maneira irregular, seguindo o formato da sua concha de madeira, apreciamos também o nascimento dos esporos, que se replicam e se transformam em novos indivíduos, combinados em elementos díspares que se convertem em criaturas independentes. Opera em um esforço criativo de rejeitar limitações estéticas, incorporando a inventividade em um conjunto que é identificável como o seu, priorizando significados sobre superfícies.
Presenciamos a explosão do micro para uma solução cósmica, em que a produção de Mendes salienta imbricações de significados e ambivalência, subvertendo normas pós-industriais, atuando no interstício da manufatura. De algum modo, surge uma dúvida diante desses corpos, de qual seria a sua procedência, se seres extraterrestres ou microscópicos e ao adentrarmos na exposição nos deparamos com trabalhos que performam esse estado de ambivalência, em pontos de confluência que nunca se esgotam. Em “Receptáculo” vemos corpos de frutificação em seu reino próprio, coerente, cromático e repleto de organicidade. Estar diante deles é uma experiência catártica que transborda outros questionamentos.
Seu procedimento é de ajuntamento da matéria e da subjetividade, o mesmo tratamento está presente na tinta a óleo como nas esculturas e na pintura sobre resina, estabelecendo a relação entre partes da natureza, criando objetos que flutuam entre a abstração e a figuração. Apropria-se da designação dada ao receptáculo na botânica, um tecido vegetativo que constitui a porção final das hastes reprodutivas nas flores, sendo sustentação e suporte. A exposição opera um pensamento de receptáculo, do dentro e fora, e do que está exposto é o recipiente da imaterialidade, um ponto de sinapse.
Mendes, em sua destreza técnica, nos evoca questionamentos, enunciamentos que nos abrem para outras sensações e percepções ao adentrarmos em seu território, explorando a organicidade de maneira sem igual, realizando uma reconciliação entre a vida humana, a não humana e a arte, em um futuro que ainda há de ser apresentado.
Mariane Beline