Entre gestos soltos, tesselações e topografias é onde mora o infinito

 

Cresceu obcecado pela luz. Aos sete anos, desmontou os óculos de seu pai e ajeitou as lentes dentro de um jornal enrolado, com o qual mostrava para o irmão os anéis de Saturno. Passava as noites acordado, mesmo quando o céu estava completamente nublado; seu pai, preocupado ao ver o menino escrutando um firmamento preto, perguntou-lhe o que estava procurando. Karl respondeu que havia uma estrela escondida por trás das nuvens, que só ele conseguia ver¹.

Benjamín Labatut

 

Observar a produção artística de Juan Parada é um jogo contínuo de descobertas e desvelamentos, ambos indutores de uma infinitude que está sempre posta a ser percebida. É como se cada obra fosse um recorte de uma realidade ainda intangível, uma suspensão do olhar para algo em franca expansão. Essa parece ser uma tônica inicial, uma espécie de verve de ignição de seu trabalho. Sugiro, por exemplo, uma observação mais atenta à obra Tectônico V5: já um desdobramento do que o artista vem produzindo no último par de anos. Podemos elaborar questões diante daquela quase paisagem.

Se rebatêssemos essa forma por mais e mais vezes como seria essa nova e grande superfície? Qual foi o critério para definição limítrofe do trabalho? Será que ele nos quer anunciar uma relação com a imagem pictórica ou com o espaço da pintura? Ué, mas o trabalho é realizado em porcelana com alguma forma de pigmentação. Seria ele, portanto, um ensaio para a construção de um corpo escultórico? Melhor, que topografia ou pele são sugeridas a partir dali? E desse modo, seguimos num contínuo desencadear de questões que também nos põe a dúvida. É nesse “entre-espaço”, nessa tectônica ou nesse fato construído, equilibrado temporariamente, que se materializa a existência da obra de Parada.

Muitas vezes não nos atentamos àa isso por estarmos justamente seduzidos pela beleza plástica de suas superfícies e volumetrias sugeridas pelas peças dispostas em parede. É nesse ponto que mora outro aspecto louvável em sua obra: o esmero formal (dado pela complexidade da manufatura e da construção harmônica entre forma, cor e material) e o que eu gostaria de chamar de um sentido de presença, no qual a força desse esmero em contato com a luz, apreende o olhar do espectador. Nesse ponto, por exemplo, o interesse é desviado pela revelação do material, à exemplo da nobreza milenar da porcelana, pela ludicidade da imagem que pode ser análoga à representação da natureza (uma pele de animal? uma superfície inóspita?), entre tantas outras derivações de sentido.

Deixemos um pouco de lado a sedução das formas e voltemos para o que quisemos chamar de desvelamentos. Vejo nesse jogo uma imprecisão de começo, meio e fim. Se o trabalho está materializado e limitado pelo que é, seu sentido conceitual e poético segue por caminho impreciso, algo que flerta com a própria noção de infinitude. E nesse ponto, acredito estar o centro nervoso de sua produção: espelhado, por exemplo, no caos das linhas que delimitam peça por peça em suas novas Tesselações, Topografias e Tectônicas até no abraço definitivo ao acaso das suas Pinturas Simuladas e Pinceladas Flutuantes, em que o gesto da mão no manuseio da cerâmica é estudado em profusão.

Aliás, flutuação e movimento agregado também estão nitidamente expressos na obra Smoky Room – curiosamente o único trabalho intitulado pela forma que sugere e não pelo rigor da experimentação da qual ele nasce. Da minha parte, me fez lembrar dos quase estudos científicos de movimento empreendidos pelo francês Marcel Duchamp ainda nas duas primeiras décadas do século XX. Guardando as devidas proporções e mantendo o cuidado com o tempo histórico, as aproximações com o universo duchampiano não precisariam parar por aí: vejo, na verdade, que elas começam nos pontos de contato possíveis entre arte e ciência, ou seja, dois caminhos da produção de conhecimento humano que lidam constantemente com a ideia de infinitude e o desejo permanente de escrutínio. A meu ver, Juan Parada é um escrutinador da matéria e da forma que, muitas vezes, ganham ponto de contato, o que dá materialidade aos trabalhos.

Podemos, portanto, traçar alguns paralelos que tornam esse mergulho poético na obra do artista ainda mais intrigante. Vejamos as principais Tesselações apresentadas. Em todas elas, o artista propõe um desenho inicial, uma espécie de alavanca deflagratória de um movimento que estruturará um projeto gráfico vetorial. É dessa geometria matemática subvertida por ele que nascerão as linhas mestras das partes que comporão o trabalho. Esse desenho, muitas vezes topográfico, traz à superfície uma riqueza plástica que parece encontrar o exato ponto de contato entre o universo micro e o universo macro, um meio do caminho em que, paradoxalmente, uma paisagem extremamente pequena, impossível de ser vislumbrada à olho nu, encontra uma outra paisagem tão imensa e distante que também não pode ser apreendida pelo olhar. Análogas a elas, está o trabalho do artista. Com um pouco de imaginação, ao nos depararmos com um trabalho do Parada, nos damos conta de duas imagens absurdamente distanciadas em escala: uma superfície lunar ou de qualquer outro planeta ou satélite do sistema solar guarda reais semelhanças com um conjunto celular observado por microscopia eletrônica. De imediato, sugiro como exemplo, as obras Tesselação II V1 e Tesselação II V2, ambas representam de uma forma ou de outra esse arco de espaço-tempo entre o micro e o macro.

Esse interesse pela ciência está na íntima relação que o artista possui com a presença da natureza em sua vida, especialmente pelo contínuo despertar da curiosidade que é parte de seu âmago. No diálogo com o artista, ficaram patentes algumas pistas capazes de nos fazer entender essa possível correlação poética entre os ordenamentos e complexidades da natureza e a construção material e plástica de seus trabalhos de arte. Juan Parada foi motivado desde cedo, ainda em Curitiba, quando criança, a adentrar o universo das artes em cursos de formação artística – tanto pelo apuro da manualidade e da técnica como na apreensão de um repertório visual. Ao mesmo tempo, foi desde cedo estimulado a estar em convívio com o meio biótico, sendo esse um campo aberto de estímulo a observação. Com a devida licença ao rigor científico, o artista construiu ao longo da vida um lugar de “geólogo das formas da natureza”, pois é também da terra, em última instância, que o artista retira a materialidade de seu trabalho.

Desse modo, sua produção me trouxe à lembrança a prosa do escritor chileno Benjamín Labatut que recentemente lançou o livro de contos “Quando deixamos de entender o mundo”, colocando força na produção literária que interpola a divulgação científica com a verve imaginativa da ficção. No capítulo “A singularidade de Schwarzschild”, Labatut conta a história do renomado físico alemão Karl Schwarzschild, o cientista responsável por encontrar os primeiros indícios do que viria a ser no futuro descrito como “buracos negros”. E é nesse processo de toda uma vida dramática que o escritor nos traz um precioso relato de reminiscências da infância do cientista. É nessa memória do passado que resistiu a força essencial do escrutínio. Algo que, de certo, também motiva Parada desde a sua infância. Não se trata de comparativos ou da criação de paridade entre arte e ciência, mas da importância de olharmos com lupa para a formação de uma espécie de “habitus” do artista, como bem definiu o filósofo Pierre Bourdieu. Trata-se desse espaço social em que foram sendo incorporados desejos, disposições, formas de viver e atua no mundo. Portanto, é no lastro transmutado dessa memória do artista que reside o seu ímpeto para sua prática artística.

* * *

Entre gestos soltos, tesselações e topografias é onde mora o infinito. O título deste texto expositivo dispõe de três conceitos que me parecem centrais na obra do artista e que sublinham ainda mais a percepção de infinitude que o trabalho do artista nos sugere. Em primeiro lugar, está o gesto: elemento que se deriva nos traçados dos desenhos, na manipulação continuada da cerâmica, na lapidação das peças e na construção de limites temporários para o trabalho.

Em segundo lugar, entra a tesselação, um importante “conceito guia” de acordo com o artista. De modo geral, trata-se de superfícies planares que sofreram divisões em partes iguais e repetitivas. Elas em conjunto geram um movimento contínuo de formas sobre uma superfície, sem sobras e nem sobreposições. Se pensarmos em azulejarias que conformam espaços continuados de parede ou alguns desenhos escherianos, temos exemplos comuns das tesselações.

Isso permitiu com que Parada conseguisse construir unidades de fruição que se deflagram no espaço, construindo paisagens que parecem romper com a finitude. Ao mesmo tempo, ele também atuou no volume dessa malha desenhadas, o que subverte, por exemplo, a visão apaziguadora de uma figura planar. A espessura da obra o permite trabalhar um jogo de volumetrias, definindo novos topos (lugares) geométricos. Isso o faz irromper o próprio plano pictórico, fazendo com que a percepção do trabalho aconteça pela observação ativa do objeto, ao caminhar pela sala expositiva. Aqui, a luz ganha um papel central, sendo ela elemento de cena responsável por amplificar o sentido de presença que mencionamos no início.

Sugere-se, portanto, o caminhar em idas e vindas na observância de um trabalho central da exposição, intitulado Topografia Polifônica V1, em que toda uma topografia de formas conduzem o olhar por entre os veios, quase como uma estrutura melódica em partitura musical. Ascensões, picos, chanfros, curvas, retas, subidas, descidas, planos, planaltos, intervalos, diagonais vão sendo descortinados à medida em que se movimenta o olhar pelo trabalho. Tudo sob a gestão da luz que habita o espaço.

Por fim, toda essa saga retórica me faz lembrar das palavras de um dos maiores artistas/ intelectuais franceses dos últimos tempos, o cineasta Jean Luc Godard. Ele escreveu o verso-sentença “arte é como incêndio, nasce daquilo que queima”; reconhecido no território poético e conceitual do cinema e publicado em seu livro História(s) do Cinema, de 1998. Literalmente, Juan Parada é o artista da maestria da queima da cerâmica e do bom trato da porcelana, conferindo uma nova resistência e uma nova aparência em vida ao material manipulado. É nesse risco da artesania - um processo de elaboração infinita de conhecimento adquirido ao longo do tempo - que mora a força dos trabalhos do artista.

 

Diego Matos

 

¹  Trecho extraído do segundo capítulo do livro, intitulado “A singularidade de Schwarzschild”:

LABATUT, Benjamín. Quando deixamos de entender o mundo. São Paulo: Todavia, 2022. p. 40.

Pintura Flutuante 1, 2024

cerâmica pintada com engobe, aço e madeira

81 x 70 x 8 cm

Tesselação II V2, 2024

cerâmica vitrificada sobre alumínio

115 x 54 x 7 cm

Tesselação II V2, 2024

cerâmica vitrificada sobre alumínio

115 x 54 x 7 cm

Smoky Room I V5, 2024

cerâmica vitrificada sobre alumínio

100 x 80 x 6 cm

Série Pintura Simulada 1, 2023

cerâmica vitrificada e rochas

52 x 30 x 13 cm

Topografia Polifônica V1, 2024

cerâmica pintada com engobe sobre alumínio

110 x 102 x 6 cm

Tesselação I V3, 2024

cerâmica vitrificada sobre alumínio

71 x 71 x 10 cm

Tectônico V5, 2024

porcelana sobre alumínio

95 x 164 x 7 cm

Pintura Simulada 2, 2024

cerâmica vitrificada

53 x 28 x 14 cm

Pintura Simulada 3, 2024

cerâmica vitrificada e engobe

51 x 25 x 14 cm

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