A representação de mulheres na história da arte, especialmente no campo da pintura, foi, por muito tempo, largamente restrita à reprodução de modelos em poses artificiais, as vezes lânguidas, idealizadas em ternura maternal ou em pudor dissimulado – para além da falta de mulheres artistas e do apagamento das raras exceções. Mesmo com os avanços da arte moderna, em obras de Courbet ou Manet, as mulheres – ainda que mais ousadas e confiantes – continuavam objetificadas, sujeitas a um olhar extensamente sexualizado e marcado por estereótipos de gênero.
O trabalho de Lize Bartelli reside nessa lacuna histórica, calcando-se no retrato de mulheres a partir de um olhar feminino, desinteressado de funções ou papéis tradicionais. Traçando uma nova linhagem da retrastística, ela lida com a tela e com a tinta a óleo, além de objetos incorporados à superfície pictórica, para discutir o espaço ocupado pelas figuras que elege representar.
A série “Skeleton Closet”, título homônimo da primeira individual de Bartelli, é um vislumbre da construção de um mundo que mistura imaginação e realidade, propondo criações figurativas, mas não necessariamente realistas. A artista convida amigas e familiares a posar para retratos absolutamente íntimos, geralmente solitários, em ambientes particulares e interiores domésticos. Ocasionalmente, um gato ou uma criança acompanham as modelos, carregando as cenas de um simbolismo misterioso. Lançando mão de cores não-naturalistas, as peles das figuras são esverdeadas e azuladas, evocando certa decadência, a mortalidade inerente a todas nós. O próprio título da mostra alude aos esqueletos no armário, apontando, de um lado, para o aspecto da morte, enquanto também sugere os segredos e enigmas que todas as suas personagens insinuam.
Já o contexto privado onde os retratos são situados reflete sobre a posição da mulher na sociedade. As obras partem dos papéis conferidos forçadamente ao gênero feminino, tais como a domesticidade e a reclusão, mas contrariam a tradição da pintura do século XIX de mulheres nas janelas. Bartelli subverte o gênero do retrato, tradicionalmente dominado ora por figuras austeras e imponentes, geralmente do gênero masculino; ora por mulheres objetificadas, sem agência ou poder.
As pinturas evocam as imposições da sociedade sobre o corpo da mulher, podado e moldado para ser o que se espera – afinal, mulheres sempre foram condicionadas a se sentar, andar e se vestir de acordo com padrões: foram colonizadas até em seu modo de pensar. A artista investiga esses marcadores históricos e sociais incrustrados nos corpos femininos, celebrando que suas personagens divirjam das normas, apresentando-as descalças, com roupas confortáveis, tatuagens à mostra, em poses descontraídas e despojadas. Bartelli, assim, cria um novo lugar na pintura, íntimo, de conforto e segurança. Suas protagonistas são enaltecidas pela autonomia, insubmissão e potência, e nos convidam a entrever não o que a pele revela, mas o que escondem no interior do armário.
Julia Lima e Mariane Beline