Tecer às avessas
Três eram as Moiras[1] que decidiam a sina de todos na mitologia grega – sua autonomia era tamanha que nem os deuses podiam interferir em seus planos. A narrativa da vida, aqui representada por uma linha, era iniciada por Cloto, que a colocava em um fuso. Láquesis então assumia, puxando o fio e assim decidindo as fortunas e desfortunas de um indivíduo. Por último, vinha a implacável Átropos, responsável por cortar a linha da vida. Também Penélope usava o tecer e destecer de um sudário dedicado ao rei Laerte como uma estratégia para declinar propostas de pretendentes que tomavam seu marido, Ulisses, como morto[2]. O fio, ou a linha, é carregado de simbolismos que vão bem além do campo mitológico: da aranha (representação materna no universo de Louise Bourgeois, arquétipo super-heroico no universo de Stan Lee) – à enorme trança da Rapunzel, que lhe salva a vida. A palpabilidade de sua imagem o faz presente em expressões corriqueiras, como “fio da meada” e “por um fio”, e é ele que amarra um dos poemas mais bonitos da língua portuguesa, Tecendo a Manhã[3], de João Cabral de Melo Neto. A linha é também a matéria-prima preferida de Marina Weffort.
Seu fazer artístico, no entanto, difere fundamentalmente daquilo que é esperado de obras com tecido, em que há um exercício da construção pela adição. Sobre panos pré-fabricados, Marina pinça fios, retirando-os da trama e assim revelando imagens. Pela própria natureza do processo e do material, as formas criadas são geométricas, e grosso modo retangulares. A artista planeja sua operação de antemão, fazendo marcações em cada um dos tecidos. Erros ocorrem e são às vezes incorporados, levando a imagem a outro lugar, mas raramente são bem-vindos – ocasionalmente fazem com que a artista abandone um trabalho e comece de novo.
Há uma negociação constante com a matéria, que cede ou resiste e obedece, como tudo, à lei da gravidade: Marina trabalha o tecido na horizontal, sobre uma mesa, mas o exibe sempre na vertical. Alguns são pendurados com seis ou quatro rebites, outros com apenas dois na parte superior, deixando a parte inferior mais vulnerável. Todos os tecidos são expostos sem moldura e convidam o espectador não ao toque, mas ao sopro, já que o menor sinal de vento coloca as obras em movimento. Eles seguem uma paleta de cor restrita, em tons pastel, que vão do branco e cinza ao marrom, com uma eventual concessão (ou desvio) para o vermelho. Por vezes grandes e imersivas, por outras afáveis em escala, as obras são invariavelmente sem título. Suas formas, no entanto, sugerem imagens que lhes rendem apelidos carinhosos, como Marzinho, Ampulheta e Bambu.
O que parece um marzinho é um tecido cinza-claro que apresenta listras verticais intactas, deixadas a um intervalo regular, simétrico. Dentre uma listra e a próxima, a artista remove todos os fios verticais, dando lugar a longos desfiados horizontais que, sem a trama original, naturalmente formam pequenas barrigas. A partir de um pouco mais da metade inferior, Marina remove por completo seções finas. A ausência total da matéria acentua ainda mais essas barrigas, criando a ilusão de ondas contínuas. O trabalho tem só dois pontos de apoio, assemelhando-se a uma cortina. Como em todas as obras da artista, o desfiado permite um olhar através, revelando – com diferentes dimensões de clareza, como neblina – um espaço entre o tecido e a parede.
Há outro trabalho que, observado a certa distância, se assemelha a uma floresta de bambus. A vontade cartesiana aqui é mais livre, e cada um dos “troncos” apresenta uma espessura diferente, bem como cortes horizontais em alturas variadas, enfatizando a dimensão figurativa da composição. Como marzinho, ele é claro, de um ocre esverdeado, mas ao contrário do outro é pendurado com alguns rebites para que fique esticado. Já a janela cinza dialoga com a floresta de bambus em seu ritmo, porém tem uma vontade intrinsecamente simétrica – e menor escala. Em várias das outras obras expostas, a artista cria formas triangulares, como uma ampulheta ou uma montanha/vulcão. Ou mesmo um triângulo reto, que ora desce, ora sobe, tal qual franjinhas. Todos os tecidos são únicos, mas fazem parte de uma mesma genealogia. O trabalho que mais foge dessa ordem é uma pequena obra cinza com um grid horizontal. Ela apresenta no topo uma forma geométrica, porém abstrata, que remete a um cometa ou – por que não? – a um retrato de Marge Simpson, que deixa de fora parte do seu icônico cabelo.
Ainda que preferido, o tecido não é a matéria-prima exclusiva da artista. Em paralelo a sua produção têxtil, Marina cria, usando um marrom quase flicts[4], aquarelas monocromáticas, que dialogam com seu outro corpo de obras. Algumas de fato se parecem com os tecidos, como se fossem projetos, obedecendo ao rigor do retângulo. Outras exploram formas circulares, ovais ou híbridas que, quem sabe um dia, irão se formalizar como tecido. Há no seu fazer uma regra básica: a artista molha o pincel com tinta uma vez e trabalha o papel em movimentos regulares até exaurir a cor. A espessura cada vez mais tênue do gesto lembra gradativamente o desfiado do tecido. Vê-se também uma correlação do plano, pois, ainda que os tecidos sejam necessariamente esculturais, em sua forma bruta eles são bidimensionais.
Seja qual for a técnica eleita, Marina explora o rigor da forma, carregado de graça, gingado. Há uma perversão deliciosa em sua geometria imperfeita. Mole, no melhor sentido da palavra.
Maria do Carmo Pontes
[1] Ou duas, ou até mesmo uma, dependendo do relato. Como tudo o que circunda as narrativas mitológicas, não há um consenso. Nos atenhamos a três, então.
[2] Como conta Homero na Odisseia.
1
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
2
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.345. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira).
[4] Livro infantil homônimo de Ziraldo, publicado originalmente em 1969.