“Uma pintura que se relaciona com a que achamos no mastro de um barco, numa ponte, numa chaminé; é o tipo de pintura que se faz ao ar livre, assobiando enquanto na superfície a nova camada de tinta cobre a velha, protegendo-a e dando-lhe brilho ao mesmo tempo. Tem algo alegre nisso, [...] uma sensação de estar envolvido em algum tipo de ação evidentemente física e significativa”[1]. As palavras acima não foram escritas a respeito da obra de Rodrigo Andrade, e contudo a descrevem de maneira bastante precisa, principalmente no que diz respeito à ideia de um trabalho necessário e direto, e por isso mesmo “significativo”. Em mais de uma oportunidade, Rodrigo tem enfatizado, de maneira direta ou através de suas exposições, a relação íntima, quase simbiótica, do seu trabalho com o de pintores amadores[2], ao mesmo tempo colocando-se numa posição híbrida: “é possível ver a minha pintura como uma espécie de elo, de continuidade entre a pintura mais rala e vagabunda da Praça da República e Jasper Johns, que é o máximo de qualidade, de sofisticação, de tudo. Há uma vontade de colocar a pintura dentro de um âmbito que não está restrito à grande arte. Uma espécie de utopia democrática”[3]. É nessa aspiração a uma sofisticação ingênua que reside uma parte importante do fascínio das pinturas de Rodrigo Andrade. O que ele gosta, nas telas toscas dos pintores de domingo, cabe suspeitar, não é uma ideia de pureza algo abstrata e até retrógrada (no sentido da exaltação fascista de uma primigênia “pureza” do popular, que visa ao mesmo tempo apaziguar e manter em seu estado “primitivo” esse popular que exalta), mas a capacidade de atingir sem esforço a simplicidade e a economia das tarefas braçais, seus objetivos claros e diretos. A principal característica das pinturas que Rodrigo produz desde o final dos anos Noventa, independentemente da escolha pela abstração ou pela figuração, é o uso de camadas espessas de tinta, que sobressaem da tela ou, em outros casos, diretamente da parede, em formas geométricas (no caso das pinturas abstratas) ou de acordo com a imagem representada (no caso das figurativas). As paisagens, em particular, são produzidas através de um processo que ilustra perfeitamente o lugar incomum de Rodrigo Andrade nessa linhagem pictórica da qual ele fala (“da Praça da República a Jasper Johns”): o artista começa pintando de maneira relativamente convencional, geralmente a partir de fotografias feitas por ele mesmo, depois recobre a tela com um plástico transparente, que a continuação recorta parcialmente. Em seguida, prepara uma grande quantidade de tinta, até chegar na tonalidade escolhida, e a aplica nas partes desprotegidas da tela, de maneira rápida, com uma espátula. Finalmente, alisa com um rodo a superfície dessa camada uniforme de tinta, e por último retira o estêncil. Não fosse pelo cuidado na preparação da tonalidade da tinta, as últimas etapas do trabalho poderiam ser comparadas às etapas de preparação de uma parede, no âmbito da construção civil, quando a superfície é rebocada e alisada, antes de receber a pintura: “A experiência física na realização dos meus trabalhos é intensa. Sinto dores musculares, exaustão. [...] O trabalho ganha uma dimensão hercúlea de proeza. E acho que essa proeza física, assim, dá dimensão concreta ao ato de fazer arte”[4].
De certa maneira, o aspecto físico do trabalho fica mais explícito nas pinturas abstratas, e mais especificamente naquelas em que a tinta é aplicada diretamente na parede, tornando-se quase uma representação da própria ideia de quadro. Aplicadas em camadas monocromáticas e quase sempre num formato retangular, essas pinturas de parede, mesmo com todas as suas especificidades, não remetem à tradição do afresco ou mural, mas aludem diretamente ao quadro, e não por acaso têm sido “instaladas” com certa frequência em salas de museus, ao lado de retratos ou paisagens convencionais[5]. Nesse sentido, ao imitar o formato do quadro, elas operam, para além da sua fisicalidade, num âmbito conceitual, e poderiam ser comparadas a obras icônicas como os Surrogate Paintings do artista norte-americano Allan McCollum, por exemplo. O fato que essas obras não apareçam entre as numerosas referências citadas pelo próprio artista ou pelos críticos que têm escrito sobre seu trabalho explica-se, provavelmente, pela simples razão que as pinturas de Rodrigo operam desde dentro, por assim dizer, da própria pintura, e não desde um âmbito externo a ela, como costuma fazer a prática conceitual. Ao passo que brinca de subverter as convenções pictóricas clássicas, o trabalho de Rodrigo não busca tornar-se outra coisa: diferentemente dos Surrogate Paintings, suas pinturas nunca cessam de ser, exclusivamente, pinturas. E é exatamente por isso que, mesmo após ter começado a usar a imagem fotográfica como modelo para suas pinturas figurativas, o artista quase nunca recorre a imagens encontradas: “quando eu comecei essa fase de pintura fotográfica, imaginava que poderia me esbaldar com o mundo das imagens à disposição, como tantos pintores atuais, mas não foi isso que aconteceu. Apenas as fotos feitas por mim, com as quais guardava uma relação pessoal, viravam pintura”[6]. Ampliando esse raciocínio, parece possível afirmar que, na obra de Rodrigo Andrade, tudo é pessoal e único, até a maneira de olhar o mundo e as imagens, sempre pensando em como elas poderão tornar-se pinturas. Ao descrever a paisagem representada numa fotografia e que ele quer pintar, por exemplo, o artista já a vê, de fato, como pintura, ao ponto de falar da mata escura à margem do riacho como de uma massa “horizontal” (em referência ao movimento que o rodo terá que fazer sobre a tinta) e do reflexo do céu no riacho como “vertical”. Se as paisagens representadas são muitas vezes banais, então, isso não deve ser confundido com um desejo de isenção por parte do artista, como se a cena representada lhe fosse, no fundo, indiferente. Pelo contrário, é como se algo o atraísse nessa banalidade ao ponto de justificar o esforço físico e mental de produzir a obra, de resgatar através da pintura exatamente essa do fluxo inexaurível de imagens que nos são apresentadas constantemente. A massa de tinta, seu peso e sua aparência extremamente particular são os instrumentos que Rodrigo usa para esse resgate, sem muitas explicações ou justificativas, apenas o desejo, ou talvez a necessidade, de instaurar uma relação pessoal.
Jacopo Crivelli Visconti
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notas
[1]DANTO, Arthur C., Between the Lines: Sean Scully on Paper. “It is painting which is close of kin to that we find on ships’ masts, on bridges, on smokestacks; it is the kind of painting someone does in the outdoors, whistling, as the surfaces get covered with fresh paint over old paint, protecting and brightening at once. There is something cheerful about such painting, [...] a sense of being engaged in some immediately physical and meaningful action”.
[2]São significativas, nesse sentido, as exposições O Jogo dos sete erros – Ranchinho e Rodrigo Andrade, Galeria Estação, São Paulo, 2012 e Praça da República, Ateliê 397, São Paulo, 2015.
[3]Entrevista a Thiago Mesquita, em Resistência da matéria, Cobogó, Rio de Janeiro, 2014, p. 91.
[4]Entrevista cit., p. 137.
[5]Por exemplo, nas exposições Paredes da Caixa, Caixa Cultural São Paulo, 2006 e Rodrigo Andrade: óleo sobre, na Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2010.
[6]Entrevista citada, p. 90.
Mais infos: http://simgaleria.com/pt-BR/Exposicoes/Exposicao?exposicaoId=59