POROS E ESTILHAÇOS
Enquanto através de cenas, paisagens, retratos ou por meio de soluções abstratas diversas, geométricas, gestuais ou matéricas, a maioria dos pintores persiste no clássico objetivo de fazer com que suas telas e afrescos sublimem as paredes onde estão fixadas, Paolo Ridolfi, ao contrário, coloca-nos diante de planos estilhaçados em padrões multicoloridos, uma acumulação de pequenos losangos, círculos, quadrados, estrelas de desenhos variados, tudo tão enfaticamente material que parece projetar para fora, transbordar e escorrer pelas superfícies, dinamizando ainda mais as composições, tornando-as ainda mais vivas pulsantes. E o artista obtém esse resultado mesmo quando suas telas assemelham-se a muros, desses de grandes construções, imponentes e robustos, comuns em sítios urbanos, contendo barrancos, suportando viadutos, atravessados por túneis e dutos por onde escoam águas e os líquidos de toda a sorte que atravessam incognitamente o chão das cidades. E não deixa de ser curiosa a idéia de sobrepor a uma parede outra parede. Transpondo esse procedimento para outras linguagens, equivaleria a pensar num poeta que em lugar de ocupar uma folha de papel em branco com palavras concatenadas entre si, optasse por preenchê-las com palavras soltas, apenas fazendo-as variar seus desenhos, variando entre o nítido e o borrado e difuso. Em outras palavras, preferisse abandonar as significações que os arranjos entre elas poderiam fornecer para apresentá-las como uma nebulosa. O que também leva-nos a um maestro que substituísse a música a ser tocada, por cacofônica, atonal e incidental que fosse, pedindo que cada um dos músico fizesse soar seus instrumentos.
O simples pensamento de uma pintura que de certo modo reitera e sobrepõe-se a presença da parede em que está fixada pode levar a supor em resultados claustrofóbicos, imagens sufocantes, ainda mais se se trata de obras de grandes dimensões, como é o caso da maior parte das apresentadas nessa exposição de obras recentes de Paolo, com a qual ele inicia seu trabalho conjunto com a jovem Galeria Sim. Porém, basta se deter diante dessas telas para ter uma sensação completamente distinta. Conquanto cada uma passe-nos a noção de coisa sólida, trata-se de uma solidez carismática, garantida por cores fortes e contrastes vivos, recurso que lhes confere vivacidade e até mesmo efervescência. O pintor exalta suas superfícies como planos potentes, transbordantes, nada a ver com um elemento passivo, que é o que comumente associamos a paredes e telas em branco, simples suporte de nossas idéias e ações.
Se Paolo Ridolfi, como bom pintor, logra desviar nossa atenção da parede para sua pintura, nela, como já foi dito, a planaridade típica da parede reaparece e numa solução muito mais enfática e expressiva, longe da homogeneidade e a discrição daquelas que definem os espaços domésticos e as salas de exposições de arte. Diferentemente da textura lisa, sem solução de continuidade do acabamento habitualmente empregado, elas, coerentemente, mantêm relação com a lógica ornamental das pinturas murais, nomeadamente as que são revestidas de azulejos, desses pintados com padrões geométricos repetidos, passíveis de serem combinados de modos variados, um modo peculiar de obter o estilhaçamento virtual do plano que as recebe, procedimento que no nosso país atingiu seu ápice em Athos Bulcão, referência clara do artista.
Como já sugeri, grande parte dessas novas pinturas parecem recobertas de azulejos quadriláteros de bordas frisadas, organizados em sequências que se destacam por força das linhas nítidas, incisivas e grossas que compõem as juntas que há entre eles. Há ilusão e ela se concentra no retorcimento dramático dessas composições, no enunciamento de aberturas circulares, concêntricas, sempre tortuosas e, em alguns casos, flagrantemente perdidas. Há também aquelas cujas retículas coloridas de azulejos modifica-se por séries de recalques e reentrâncias, trançando sua superfície em formas geométricas, regulares, ganhando as feições semelhantes a objetos e elementos familiares como correntes, tranças, gotas, e que, em função da similitude cromática, confunde-se com o fundo, num acontecimento próximo a esses peixes e borboletas que se fundem a pedras e troncos, quando então se mexem, deixando-nos maravilhados por testemunharmos a irrupção de algo que até então não sabíamos existir.
A movimentação da superfície das pinturas de Paolo sugere a porosidade das paredes, a possibilidade de que elas, ao invés de bloquear nossa visão, o avanço do nosso corpo, enuncie a passagem para um outro lugar, uma zona misteriosa que captura nossos olhos, fazendo-os avançar em suas entranhas. Simultaneamente a esses efeitos de profundidade acontecem os jogos de superfície, o embaralhamento e distorções de módulos planares, recursos que emprestam movimento ao olhar, fazendo-o deliciar-se no simples percorrer ocioso, como alguém que se deixa contemplar incansavelmente o vai e vém hipnótico das ondas, a ondulação lenta das chamas de uma fogueira, o batuque desencontrado de uma chuvarada sobre um teto metálico.
O requinte dessa peculiar investigação sobre os vários modos de se ativar uma superfície plana estende-se dos ?azulejos? às composições povoadas por linhas coloridas, curtas e ritmadas, organizadas em múltiplos matizes, numa singular mescla da optical art com o pop. Com essas linhas o artista constrói vórtices, junta-as em pilhas, sempre obtendo irradiações de alta temperatura cromática, com uma desenvoltura que há muito não se vê na paleta dos nossos artistas, nem mesmo entre seus colegas de geração 80. O resultado é um espaço dentro de um outro espaço, um produto pictórico cuja ostensiva e constrastante relação com o espaço real leva-nos a concluir sobre o estado de confusão entre o cotidiano e o maravilhoso, o banal e o insólito. Onde estamos afinal? De que matéria somos feitos? A pintura de Paolo Ridolfi parece recuar momentaneamente sobre a parede na qual está estendida para então projetar-se para fora, sobre nós, arrastando-nos para dentro dela.