As pinturas mais recentes de Paolo Ridolfi, aqui expostas, podem ser tomadas como um balanço poético de sua trajetória, iniciada na década de 1980. Neste balanço, porém, o artista não se contentou em reavaliar as conquistas visíveis daqueles trabalhos que lhe abriram novos caminhos. Ridolfi foi além e mergulhou em direção a uma camada profunda e menos evidente de seu processo criativo: aquela da articulação semântica de recorrências – cromáticas, espaciais, temáticas e intuitivo- conceituais, etc.- que em três décadas formaram um sentido comum, processual, subjacente à sua produção, desde o florescimento inicial até o presente. A mostra é, portanto, uma ocasião privilegiada para o mapeamento de questões fundadoras do núcleo poético de seu trabalho, não só do ponto de vista auto-avaliativo de Paolo (e dos que o vêm acompanhando criticamente), como também do daquele de curiosos e interessados que costumam depositar em mediações teórico-discursivas parte de suas expectativas de compreensão da produção contemporânea. Em depoimento recentemente prestado, Paolo Ridolfi afirma que:
“depois de tanto tempo trabalhando com a figuração, quero voltar ao primeiro assunto: apenas a arte. Na figuração há muitos elementos para serem interpretados, em Pinturas Vazias apresento obras livres desses outros significados, quero valorizar cada cor, cada pincelada, a pintura em si e esvaziar as telas de qualquer narrativa” [...] “É como se eu estivesse voltando à pedra fundamental das minhas obras e anseio saber qual será a recepção das pessoas quanto a essa decisão”.
No entanto é bom não perdermos de vista que a pedra fundamental da produção de Paolo, artista contemporâneo, é basicamente a mesma que alicerça a pintura moderna. Coube paradoxalmente a Maurice Denis, pintor simbolista francês (1870-1943), a definição de pintura mais importante do modernismo. Ela abriu o caminho que levou ao triunfo das artes abstrata, construtiva e concreta, algumas décadas mais tarde. Publicada pela revista Art et Critique essa definição integrava o Manifesto Nabis, lançado nesta revista por Denis em agosto de 1890.
“um quadro – antes de ser um cavalo de batalha, uma mulher nua ou qualquer anedota – é essencialmente uma superfície plana coberta de cores reunidas numa certa ordem”
A definição de pintura proposta por Denis enfatizava, com surpreende acuidade (se consideradas tanto a época, quanto a timidez de sua obra) o teor planar da tela que acolhia a pintura, substantivo e essencial, em detrimento da narrativa de temas específicos, sempre cambiantes e, por isso mesmo, impossíveis de gerar conceitos permanentes. Para muitos artistas do final do século XIX a tela havia deixado de ser somente fundo cênico, para tornar-se campo de invenção formal e cromática. De maneira semelhante (mesmo antes da volta deliberada “à pedra fundamental” do trabalho), parte considerável da produção de Paolo Ridolfi sempre foi marcada pela preocupação de ativar, por meio da cor, o plano pictórico.
Da afinidade do artista com este fundamento essencial da pintura moderna deriva, portanto, outra questão: como a adesão de Ridolfi ao espaço pictórico planar modernista, auto-referente, pode fundamentar a releitura autocrítica de seu trabalho, já que este (como, por sinal, toda a produção contemporânea) quase sempre transborda do âmbito sintático estrito da modernidade (interno e auto-referido), para o campo semântico (isto é o campo do sentido e da conexão do trabalho com o mundo cotidiano)?
A resposta passa por uma pintura cujo sentido planar não resulta necessariamente num espaço abstrato. Ao contrário, esses quadros remetem (e seus títulos o confirmam) ao Concreto (termo cuja ambiguidade pode designar tanto o material de construção, quanto a arte concreta), aos Cobogós e Azulejos, elementos arquitetônicos indissociáveis da parede, que o artista faz migrar para a tela por meio de seu trabalho, semantizando formas aparentemente abstratas. Durante milênios, muros de templos e palácios eram praticamente o único plano pictórico disponível (murais). Foi somente na Renascença que o quadro (óleo sobre tela) substituiu-os, conquistando sua hegemonia absoluta.
Ridolfi nos lembra desta ligação ancestral entre pintura e arquitetura, conforme observou Agnaldo Farias (em catálogo da mostra anterior de Ridolfi na SIM). Esse padrão cromático-planar manifesta-se, inclusive, muitas de suas fotografias iniciais, quando imagens, profusamente coloridas, eram registradas de modo a criar distâncias mínimas (um achatamento) entre o primeiro plano e o fundo. Dentre as diversas séries de pinturas expostas (todas resultantes do balanço poético feito pelo artista nos dois últimos anos) algumas dão continuidade a experiências anteriores. Este não é o caso de suas Pinturas Vazias. Novas, estas pinturas são a melhor expressão da radicalidade do mergulho dado por Ridolfi.
O título desta série evoca diretamente o quadrado negro sobre fundo branco de Kasimir Malevitch (1878-1935) considerado, em 1913, tanto pela crítica, quanto pelo público, como uma celebração do vazio.
As Pinturas Vazias não são, porém, planos simples. Formadas por paralelepípedos montados e costurados com a mesma lona de suas telas, elas estão pintadas por camadas monocromáticas de tinta acrílica que ratificam seu status pictórico apesar de sua tridimensionalidade flácida.
Ainda que a remissão ao Vazio atribuído a Malevitch possa não ter sido intencional, algumas das Pinturas Vazias de Ridolfi possuem subtítulos extraídos da história da abstração geométrico-concreta. Além disso, essas obras são submetidas às intervenções evocadas pelos títulos que lhes foram atribuídos pelo artista: em Ruptura (nome do manifesto de lançamento do movimento concretista paulistano, em 1952) o paralelepípedo amarelo está rompido (descosturado), já na Homenagem a Lucio Fontana, monocromo vermelho está cortado. Mais próximos dos temas da própria arte as Pinturas Vazias de Paolo Ridolfi parecem corresponder ao anseio do artista manifesto em seu depoimento - voltar ao primeiro assunto: apenas a arte.
Fernando Cocchiarale