Felipe Scovino
Nas recentes obras de Kboco nos deparamos com uma imagem fatiada, retomada e reinventada. Mas que imagem é essa? Qual é o signo que ela revela? São cidades que apresentam uma arquitetura em trânsito, um dinamismo frenético da urbanidade. São obras que não possuem apenas a visualidade da rua mas possuem o cheiro, as incongruências e belezas do nosso entorno. Não há uma narrativa com começo, meio e fim, porque aliás não há fim. É uma obra em andamento. Nosso olhar se perde - pois não há um centro -, ele é multidirecionado e assim avistamos as inúmeras encruzilhadas, avenidas, ruas, prédios, casas, parques que compõem essas telas. Como uma planta baixa, suas pinturas sobrevoam uma cidade imaginária constituída por inúmeras referências, que variam desde fabulações a indícios de arabescos, torres, portais, pórticos e fachadas. Esta proximidade com a transformação da cidade e o contato com a arquitetura estão conectados desde o início da trajetória do artista. Suas pinturas murais realizadas em cidades com características e formações históricas e temporais tão distintas como Goiânia, Olinda e Porto Alegre auxiliaram na construção de um método muito próprio relacionado a sua percepção sobre o desenvolvimento da cidade, seus males e benefícios. Seria muito fácil afirmar que Kboco é um artista que tem o graffiti como base de sua formação. Não quero desdizer isto, mas penso que sua ideologia e olhar se conectam com uma qualidade muito especial de produção entre arte e rua que o faria estar mais próximo dos muralistas mexicanos, no sentido de ter o compromisso de instituir a cidade como um painel ou manifesto sobre as desigualdades sociais. Deslocando esse discurso para a contemporaneidade, está presente em sua obra um relato crítico sobre o crescimento desenfreado da cidade que provoca fenômenos como o descarte fácil e rápido de objetos até consequências mais graves como a especulação imobiliária e a gentrificação dos centros urbanos. A temática do descarte está presente na instalação composta por uma série de objetos recolhidos pela cidade, restos de obras, partes de móveis que compunham a arquitetura de um espaço, que reunidos - e em alguns casos recebendo uma interferência mínima do artista na aplicação da tinta criando – formam um novo lugar, um outro índice sobre a cidade. Pelo gesto da recusa de anônimos, Kboco constrói uma visualidade urbana, dinâmica e atemporal. Na aparente fragilidade destes objetos, tomamos contato com um mosaico que dialoga intensamente com o ritmo acelerado e fraturado das cidades expostas em suas telas. Ainda pensando no alargamento das influências ou diálogos que sua obra realiza, é interessante pensar não apenas nas relações (talvez já óbvias) que as obras de Jean-Michel Basquiat e Keith Haring tiveram não somente para a obra de Kboco mas para a transição entre uma produção artística realizada na rua e seu deslocamento para o cubo branco e tendo a cidade como suporte, método e instrumento, mas fundamentalmente em associações menos evidentes, como as gravuras de Livio Abramo, especialmente as séries Rio (realizada nos primeiros anos da década de 1950) e Paraguay (produzida em meados dos anos 60). Tanto em Abramo quanto em Kboco tornam-se visíveis construções de cidades que ficam na fronteira entre o sonho e a aparição de signos que conectam essas perspectivas até então imaginárias ao mundo real. Não quero dizer que Basquiat e Haring não são importantes legados (mais o primeiro que o segundo) para Kboco assim como as gerações seguintes representadas por artistas como Banksy ou Shaun Gladwell, muito pelo contrário pois são discursos construídos sobre a mesma plataforma (a cidade) mas extremamente diversos em suas estratégias e aparições. Os dados expressivos, ácidos, contundentes e críticos destes artistas estão contidos na obra de Kboco mas ao mesmo tempo há uma linguagem específica e própria se desenvolvendo no trabalho do brasileiro. Para esta exposição, o artista não expôs apenas as telas nas paredes, mas inverteu e subverteu o cubo branco. A parede não é apenas a matéria que sustenta as obras mas o seu suporte, a tela colocada sob a cidade, a própria obra. O trabalho especialmente produzido para a exposição cria uma associação com as suas telas e além disso, deslocando para a história da pintura, sua obra amplia o conceito de pintura de paisagem. Não seriam paisagens de ordem mimética, mas formas que ao mesmo tempo em que apontam a falência de uma representação figurativa, alcançam novos limites para a pintura. Em suas obras, a fragmentação do objeto leva-nos a duvidar sobre a realidade ou presença de um lugar, e aí surge a necessidade de reunir seus pedaços em uma unidade. Este discurso acerca da paisagem não tem mais ligação com um objeto do mundo natural, mas com a investigação a respeito das próprias circunstâncias que são mobilizadoras dessa transformação da paisagem.