O Suplício de Cabral
“O Suplício de Cabral” é uma alegoria sobre o processo de destruição em curso no Brasil desde a chegada dos portugueses. Também é possível entender a mostra partir de uma perspectiva menos localizada e, numa vasta escala de tempo, e compreender que a destruição da Terra está em curso desde que o ser humano resolveu agir de forma predatória sobre o próprio espaço que habita. Vivemos sob a égide do Antropoceno, a destruição é agora, mediada conscientemente pela dimensão dos excessos provocados pelo sujeito. Fabulando a partir da chegada das naus portuguesas, Thiago Rocha Pitta utiliza-se do passado para falar do presente, ao mesmo tempo que o reconstrói, como uma maneira de refletir sobre o presente e especular sobre o futuro. Para o artista, “O Suplício de Cabral” “é uma ficção histórica construída a partir de uma realidade objetiva: o nosso colapso ambiental”.
A exposição acontece no momento do bicentenário da independência e em ano eleitoral. Diante desse contexto, as aquarelas da mostra se voltam como um turbilhão para o que se tornou o Brasil a partir de 1500: um território construído sob um registro de violência sistêmica. Essa reescrita que Rocha Pitta propõe parte de uma perspectiva da Terra, traduzida pelos indígenas e os animais, que se colocam como porta-vozes. O díptico “Cabo da Roca, 9 de março de 1500, faz-se ao Mar a Armada de Cabral” revela-se como um prefácio da mostra. É no Cabo da Roca que se encontra a lápide com a icônica frase de Camões: “Aqui... Onde a terra se acaba e o mar começa…”. A pedra que parece levitar sobre o oceano revela algo fantasmagórico. A atmosfera de caos e o prenúncio de morte também são aparentes no céu matizado entre um azul forte e nuances de cinza, como se uma tempestade estivesse por vir, apontando para uma jornada não tão prazenteira. Há, sem dúvida, uma vibração funesta, pouco a pouco o clima se torna sombrio e taciturno.
O artista desenvolveu as aquarelas em uma estrutura fílmica, como um storyboard do cinema – a ideia de uma produção seriada evidenciando quadros ou fotogramas que, reunidos, estabelecem uma ordem narrativa. Outra característica que acentua a ideia de uma sequência é o fato de que a trama é dividida em “capítulos”, como séries dentro da história. Somos apresentados ao “Prenúncio”, “A Travessia”, “Um Mal Entendido”, “O Pesadelo da Terra”, “O Conselho Terrano”, “O Baptismo” e, o epílogo, “O Suplício de Cabral”.
Propositadamente, as aquarelas possuem uma beleza intrínseca, evidenciando o esplendor da natureza: o céu, o mar e sua imensidão sublime. Belo e abundante em recursos naturais era o Brasil antes dos portugueses, cuja chegada invasiva é anunciada em “O Monte Pascoal avista a armada de Cabral”. O Monte é quem observa a armada no horizonte. Nessa inversão de perspectiva, a visão se dá da terra em direção ao mar, os observados são os invasores. Com a chegada na praia, é travado um contato amistoso entre indígenas, grumetes e degredados. Depois, todos pernoitam em terra firme, exceto os oficiais. Ainda naquela noite, surgem os pesadelos. Paisagens e tempos se aproximam e se misturam, exibindo um repertório de violência e extrativismo históricos no Brasil. Um país calcado na perda. É o “O Pesadelo da Terra”: a água sonha a seca; a planta, o fogo; a terra colapsa; o céu cai; a onça vira só pele. A mata sonha pasto, eucalipto e vacas. O conjunto se coloca não só como evidência de uma série de extrações continuadas contra a natureza, mas também como uma espécie de chamamento, de revolta contra aqueles que atentam contra seu estado.
As aquarelas dessa sub-série explicitam dramas contemporâneos: não só o quanto a terra foi e continua sendo explorada, mas como o resultado dessa ação se volta contra nós mesmos. Aumento da temperatura, degelo, destruição da camada de ozônio, tempestades de areia, desertificação são resultados da ação exploratória do homem. Os pesadelos sonhados na trama de “O Suplício de Cabral” são os acontecimentos vividos nos dias de hoje.
O tom ficcional se dá, então, na forma de um levante dos indígenas, grumetes e da natureza contra as naus. Os grumetes logo aprendem a se comunicar com os indígenas e os auxiliam na revolta. A trama avança quando os invasores são enfeitiçados à véspera da partida. Enquanto estão dormindo, as caravelas são incendiadas. As poucas que escapam ao ataque são abatidas por baleias e outros seres marinhos.
Esse é o suplício de Cabral. Uma forma de reescrever a História a contrapelo, agora pela visão de quem foi atacado, saqueado, morto, estuprado. As aquarelas apontam que é a partir da chegada dos portugueses que outra condição acompanharia a História do Brasil: viveríamos constantemente sob o signo da destruição, do temor, da violência, de continuamente ter que se refazer diante de uma política predatória. Sobre esse último ponto, não é à toa que o signo da fúria atravessa as aquarelas. Há algo heroico nessa narrativa de uma natureza que abate o inimigo. A fábula da revolta dos indígenas e dos animais contra a armada portuguesa é, também, uma alegoria sobre o histórico de lutas que atravessa a memória brasileira. A história desse país se faz mediante uma opressão histórica de uma elite contra comunidades subalternizadas, mas que também respondem, a seu tempo, contra essas injustiças.
Felipe Scovino