A exposição "Vai Saudade: Heitor dos Prazeres & Zéh Palito" traz um diálogo de dois artistas que, mesmo de gerações diferentes, têm interesse na representação de pessoas negras e na sua contribuição para a cultura. O título da exposição faz referência à composição de 1965 de Heitor dos Prazeres, nascido em 1898 no Rio de Janeiro. Artista de talentos diversos, oriundo de classe popular no período do pós-abolição da escravatura, atingiu grande protagonismo na cena cultural brasileira contribuindo nas artes visuais, música e moda. Atuou também na defesa da vida negra em uma sociedade que nem sempre reconheceu a contribuição afro-brasileira como manifestação cultural relevante, antecipando pensamentos hoje conhecidos como de afrocentricidade, "black joy", panafricanismo e quilombismo.
No núcleo familiar de Heitor, o fazer artístico teve papel importante: seu pai foi marceneiro e músico da banda da Guarda Nacional e sua mãe era costureira, ofícios que viriam a influenciar sua prática profissional. Ainda muito jovem, começou a tocar instrumentos, principalmente o cavaquinho, o que o levaria a adquirir respeito no meio musical, recebendo o título de "Mano Heitor do Cavaco". Ele também se empenhou a compor músicas que tiveram boa aceitação pelos seus pares e críticos, principalmente no gênero do choro e do samba. Frequentador da casa de Tia Ciata, importante centro de encontro intelectual da época e berço do samba, também participou da fundação das primeiras escolas de samba como Portela e Mangueira. Como compositor, viria a escrever mais de 260 músicas, produzir discos e diversas apresentações musicais que falam de modos de vida centrados na experiência negra.
Prazeres atuou como figurinista, produzindo indumentária para o seu grupo musical “Heitor dos Prazeres e Sua Gente”, fundado nos anos 30. Também criou figurinos e cenários para o ballet do IV Centenário da Cidade de São Paulo nos anos 50; junto à fábrica têxtil Rhodia, colaborou criando estampas de tecidos utilizados para demonstrar a habilidade tecnológica industrial brasileira, utilizadas em roupas feitas pelos mais destacados costureiros da época. Heitor era conhecido pela sua elegância e graça no modo de se vestir – em 1962, foi eleito um dos homens mais elegantes e curiosamente ele mesmo era o alfaiate dos ternos, gravatas e outras roupas que vestia. Tal interesse por moda também se refletia na representação dos seus personagens, na atenção dada às roupas e adornos, como visto nos vestidos com saias rodadas, elegantemente volumetrizadas, nos poás cuidadosamente estampados, nas camisas listradas típicas dos "malandros", ternos, meias, laços e sapatos atenciosamente pintados. Tem-se que o primeiro ensaio de moda para publicidade fotografado no brasil, atribuído à Otto Stupakoff com a modelo Duda Cavalcanti, foi realizado no ateliê de Prazeres em 1958.
Zéh Palito que hoje se divide entre os Estados Unidos e o Brasil, nasceu quase 100 anos depois de Heitor, em Limeira, na região leste de São Paulo, conhecida por sua significativa produção de café e cana-de-açúcar durante o século XIX e pioneira na substituição de trabalhadores racializados por imigrantes europeus na Fazenda Ibicaba, propriedade de Nicolau Pereira de Campos Vergueiro, mais conhecido como Senador Vergueiro. Isso marcou o início de um projeto político de "branqueamento racial" com base em estudos pseudocientíficos que buscavam demonstrar características raciais "inerentes" que associavam raça, por exemplo, à criminalidade, menor capacidade intelectual, sendo necessário corrigir esse perigo substituindo os negros por europeus que, em maior volume, se sobreporiam ao número de pessoas negras, diminuindo sua presença ao longo dos anos, levando à sua extinção ou assimilação cultural.
Na contramão do legado de embranquecimento cultural e com interesse de reforçar a existência e humanidade de pessoas negras, Zéh retrata seus personagens com dignidade, plenitude e, sobretudo, elegância, de forma semelhante a Prazeres. Geralmente os posiciona em áreas centrais da pintura, encarando de frente, por vezes sozinhos ou acompanhados, parados ou dançando, em situações que remetem a bons momentos de tranquilidade. O cuidado com a indumentária também é observado nestes retratos, principalmente no uso de ternos, vestidos em tons de rosa ou roxo, assim como roupas estampadas com temas de flores e frutas. Na sua infância, morou em uma rua conhecida pela plantação de cana-de-açúcar, por onde costumava brincar. Nesta exposição, tal planta surge em estampas e nas composições, um elemento que também é frequente nas pinturas de Prazeres, remetendo tanto à ruralidade quanto à fonte de economia brasileira, reforçando nostalgia e também exaltando a tropicalidade.
Ao se apropriar de elementos pictóricos usados por Heitor, temos uma sensação de maior confluência com a cultura popular brasileira, seja pelas roupas penduradas no varal que marcam a pintura de Prazeres, ou mesmo pelos elementos boêmios como as cadeiras de botequim, engradados, cerveja, piso xadrez, além dos instrumentos musicais dos personagens. Porém, elementos da cultura norte-americana também se fazem presentes, como o carro Mustang, mesclados a um chaveiro que remete a uma pintura de preto velho, ou pai Benedito de um tema de Heitor. Outro artifício interessante é a substituição da logomarca da camisa tipo polo, geralmente um jacaré ou cavalo, mas neste caso a águia azul da escola de samba Portela, reforçando esse paralelo entre as culturas norte e sul-americanas. Fato interessante é que Heitor desenhou a primeira bandeira portelense, em 1929.
Nas suas viagens como humanitário pelo continente africano, Zéh Palito iniciou uma coleção de tecidos tradicionais conhecidos como Wax, conhecidos por suas estampas coloridas, gráficas, por vezes com temas florais, bastante associadas à cultura negra diaspórica e que servem de base para confecção de roupas produzidas por sua mãe, que o artista usa no dia a dia e que eventualmente adornam as pinturas ao serem coladas em tela no formato de rosetas de tecido, chamadas de fuxico.
Além da música de Heitor, que dá título à exposição, foram usadas como referência músicas brasileiras para dar título às obras, como “Felicidade pede Bis”, do grupo Fundo de Quintal, e “O mundo é um moinho”, composição de Cartola, que aparece retratado na pintura em um bar entoando um violão. Interessante lembrar do histórico restaurante Zicartola, de Dona Zica e Cartola, casal que reunia no centro do Rio de Janeiro, há 60 anos atrás, a classe intelectual e artística em torno da música e da culinária. O cardápio do restaurante continha um desenho de Heitor dos Prazeres, retratando os dois donos do estabelecimento em uma dança envolvendo panela, colher e violão.
Assim como Prazeres, Zéh também foi iniciado na infância à prática do cavaquinho, e tem músicos na sua família, que introduziram ao seu núcleo familiar a música popular brasileira. A manutenção da cultura através dos anos é uma resistência política frente às tentativas de apagamento da tradição. Tal interesse pela afirmação cultural que vemos na pintura dos dois artistas se torna uma forma de aquilombamento e de combate ao colonialismo cultural, materializando esse posicionamento. Que esta exposição inspire todas e todos a apreciar e valorizar as manifestações culturais que nos rodeiam e que moldam nossa identidade.
Ademar Britto