Limiares figurativos e abstratos
Simões de Assis, OVR ART BASEL MIAMI BEACH, pintura nas décadas de 1980 e 1990
A Simões de Assis tem o prazer de apresentar uma seleção de trabalhos que fazem parte da chamada “volta à pintura” no contexto brasileiro nas décadas de 1980 e 1990.
O conjunto evidencia o viés expressionista da produção do período, uma reação ao caráter mais cerebral e programático de grande parte da produção da década anterior, com ênfase em uma convivência inédita entre o figurativo e o abstrato, particularidade que demarca diferenças significativas em relação às matrizes do expressionismo abstrato norte-americano ou mesmo europeu, transformando certas dificuldades e impedimentos em virtudes e alternativas surpreendentes para dilemas conhecidos como os próprios limites do suporte ou esquemas compositivos e cromáticos plenamente sedimentados.
A iniciativa parece particularmente interessante quando a arte brasileira recebe atenção especial por conta da incrível coerência de sua vocação construtiva, processo investigado em exposições internacionais de grande porte sobre artistas ligados ao Neoconcretismo. Pois, se no caso da tridimensionalidade ocorre no Brasil uma transformação radical dessa linguagem herdada da tradição e uma desmaterialização da mesma na proposição de uma outra modalidade como a instalação, no caso do suporte da tela, muitas vezes num embate com ele, os artistas reunidos aqui promoveram experiências que modificaram o papel histórico da linguagem pictórica, sua abrangência supraterritorial, sem a necessidade da mesma radicalização.
Vemos, por exemplo, como nessa geração o caráter de apropriação com teor engajado e político, característico da chamada Nova Figuração, na década de 1960, converte-se em signos cuja essência gestual se contrapõe ao paralelo do universo artístico com o industrial e pode dialogar mais diretamente com manifestações culturais ligadas à rica cena pop musical da época. Há que se pensar, nesse mesmo sentido, que esses trabalhos promovem um adensamento de elementos da tradição em meio às ebulições comportamentais e à esperança de abertura política da década de 1980.
Temos, paralelamente, um espírito de corpo imprevisto, talvez um pouco como nas afinidades absolutas que vemos entre Lygia Clark, Lygia Pape, Oiticica, algo que aponta não para um mesmo pensamento, mas para um ambiente cultuado como capaz de atualizar sobretudo os chamados componentes “congeniais” da cultura brasileira, como sua matriz dita primitiva ou popular, uma cultura ligada à transmissão oral, no contexto da tradição pictórica.
O presente conjunto mostra também como a ideia de uma “geração 80” é um fenômeno que corresponde a um terceiro ciclo de assimilação “antropofágica” de estéticas desenvolvidas em outros centros culturais, a absorção “crítica” do elemento exógeno que muitas vezes inverte ou subverte de modo “macunaímico” os valores empenhados na escritura da história da arte. Depois da Antropofagia, em 1928, do Tropicalismo, na segunda metade da década de 1960, subsiste em todos esses trabalhos, em suas instâncias mais abstratas ou idiossincráticas da figura, uma ênfase e um pensamento sobre dados locais. Por exemplo, a percepção de que a cor com a qual nos relacionamos quando nos aproximamos dessas pinturas é autônoma e reflete, ao mesmo tempo, o temperamento de todo um ambiente cultural de otimismo e liberdade. Ou que, por outro lado, é capaz de sintetizar as dificuldades de superação de um contexto realmente crítico e marginal, que, no âmago da pintura, pode ser redimensionado em uma dimensão expressiva reveladora.
Rafael Vogt Maia Rosa
Mais infos: https://www.artbasel.com/catalog/gallery/3502/Sim%C3%B5es-de-Assis