Nostalgia de Mar
Nostalgia de mar
Os elementos da natureza nos conectam a um tempo maior que o cronológico: o tempo das pedras, o tempo das estrelas, o tempo dos rios, o tempo da terra, o tempo do mar. Ainda que estejamos já acostumados às metrópoles, ao concreto e à falta de horizonte, somos todavia enraizados ao chão, farfalhamos ao vento, carregamos o orvalho e o musgo. Ao conjurar essa natureza, é impossível não lembrar do poeta cuiabano Manoel de Barros, um pantaneiro apaixonado que, curiosamente, também escreveu abundantemente sobre seu encantamento com o mar – o ensejo para essa exposição. Assim nasce o recorte para este Viewing Room, a partir de um mergulho adentro do acervo da Simões de Assis, por entre temáticas de paisagem e reflexão, que encontra o mar como elemento recorrente em muitos trabalhos de suportes variados, de artistas de diferentes linguagens e gerações.
Esta exposição nos traz o horizonte à vista em um momento de isolamento e solidão, transportando-nos para outros lugares onde o oceano se impõe, domina, enche os olhos. Certas obras nos convidam à contemplação do encontro entre céu e mar: diante do grande campo de cor e luz de Sérgio Lucena, quase sentimos a brisa na pele; enquanto olhando o pequeno e sereno óleo de Miguel Bakun, podemos por pouco lembrar o cheiro da maresia. Nas pequenas telas de Yasmin Guimarães, ralas margens de cor flutuam entre uma figuração disforme e uma abstração paisagística. E as linhas de “O Mar Ático” de Gonçalo Ivo reduzem, na pureza da pintura, o limiar do firmamento, o sol, a areia, o oceano e o movimento de suas ondas.
Outros planos de céu e mar se configuram tridimensionalmente, como no objeto de Lais Myrrha, no qual uma pedra deitada, com seus veios líquidos, faz as vezes da água, enquanto uma fotografia impressa repousa perpendicularmente sobre ela, formando a linha do horizonte. Já Rodrigo Torres constrói uma topografia artificial em papel algodão, uma pequena ilha edificada sobre uma superfície azul – um fragmento insulado em um campo ampliado. Completam o conjunto as pedras e as rochas marítimas delicada e livremente costuradas por André Azevedo: de perto, aglomerados de linha colorida sem contorno; de longe, pequenas e vibrantes paisagens-arquipélagos.
Alguns trabalhos nos falam das profundezas das águas escuras e misteriosas que guardam a sopa primordial da existência. É ali onde habitam os seres estranhos de Rodrigo Bivar, criaturas desconhecidas das fendas marinhas, de onde também sai o insólito ser retratado por Antonio Malta Campos, cercado de breu e ambiguidade. Como um fóssil congelado no assoalho oceânico, entranham-se envelhecidas algas e primitivos crustáceos e moluscos na peça cerâmica de Juan Parada.
De volta à superfície ensolarada, à navegação e à pesca, temos a pintura de José Pancetti, de rara suspensão e sutileza em finas e rápidas camadas de tinta – são precisas poucas pinceladas para delinear as canoas na orla. A aquarela luminosa de Cícero Dias corporifica o vento nos coqueiros e retrata a chegada (ou seria a partida) da jangada. Há também uma tela de Burle Marx, de grandes dimensões, que carrega abstrações geométricas entre ondas e embarcações, emolduradas por campos de cor que configuram terra, céu e mar, marcadas por um sol vermelho de entardecer.
Na imensidão do mar aberto, encontramos a calmaria especular da água, numa deriva contemplativa e pacífica instaurada pela fotografia de Gustavo Espiridião, que parece ter sido tirada por um náufrago. Essa vista sem fim surge enquadrada nas colagens de Julia Kater, que também lança mão do suporte fotográfico, mas subverte a mídia em recortes e sobreposições que criam novas topografias na paisagem.
O remanso é brutalmente interrompido pela estrutura bélica fotografada por Romy Pocztaruk na costa da Inglaterra – a ruína de uma torre metálica que irrompe da água como um corpo estranho de outro tempo-espaço. Na obra de André Nacli, o desassossego surge quando a onda quebra e estronda em espuma e vapor, tão corpulenta quanto etérea. E o instante da rebentação é também capturado por Ayrson Heráclito, mas em contraste com um céu intensamente azul, e o corpo iluminado do personagem que ora parece emergir do oceano, ora parece tentar controlar a força da natureza.
Por fim, as esculturas de Emanoel Araújo invocam a presença de Iemanjá – orixá das águas salgadas, padroeira dos pescadores, rainha do mar –, celebrada nesta exposição que, mesmo ancorada no suporte virtual, lança-se como homenagem de saudade ao mar, para onde todas as águas correm; de onde a vida veio; e para onde, sempre, voltaremos.
09/04/2021 até 08/05/2021
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