Luz gasta¹
A luz cotidiana, que transpassa por entre os dedos e que vela a face. Gasta, difusa, dispõe-se a encontrar empatias formais em postulados intangíveis. É a trivialidade e a polivalência dessa luz, da sua presença imensa e diária, que rege o fascínio de Sergio Camargo (Rio de Janeiro, 1930 – 1990) e Sergio Lucena (João Pessoa, 1963) e instigam suas relações entre corpo e luz. Ambos compartilham da operação léxica da abstração geométrica em direção a uma dissolução semântica estrita, embora assente luminosas sem uma lógica construtiva, com profundas sensibilidades sobre a influência que massas exercem sobre si e seus trabalhos. Sutil e incisivamente, os artistas interessam-se pelas possibilidades de interação entre a matéria e a luz, desde a formação de sombras e silhuetas em formações grandiosas, à diminuta interação fractal das partículas minerais que atingem a retina – seja os fugidios cristais que sutilmente irrompem dos mármores de Carrara em frações de segundo, seja a madrepérola triturada e misturada às camadas de tinta a óleo que embalsamam as telas.
Na recente série de pinturas por Lucena apresentadas nessa ocasião, feitas no decorrer de 2024, o artista propõe-se a discutir propriedades inerentes ao fazer pictórico e à sua composição luminosa. A navegar em uma densa fatura gasosa, estrutural na medida que é atmosférica, há a incorporação de um elemento monolítico, quase escultórico, sempre presente: decanta e paira uma robusta linha branca horizontal. Sua presença não busca uma divisão dada entre o firmamento e o chão – apesar de sugestões da cultura visual ocidental tendam a essa direção, na magnetização interpretativa de uma paisagem figurativa –, mas a repetição de um elemento compositivo, estrutural, que reafirma a polivalência paradoxal de um corpo denso demonstrar leveza. Há, portanto, um ensejo construtivo que levita, acentuando por contraste o próprio caráter etéreo das pinturas, fazendo-nos confabular sobre as leis físicas que atuam sobre elas – afinal, Lucena interessa-se pela física e pela matéria, oferecendo-as como veículo a uma esfera etérea.
As esculturas de mármore branco de Camargo, seu corpo de trabalho mais reconhecível e quintessencial, almejam a criação de uma áurea pétrea, melhor absorvida por aspectos energéticos e poéticos do que cognitivos e gramaticais. Expoente de um ímpeto construtivista, ainda que desvinculado de coletivos artísticos, constituiu um legado incontornável na manipulação de sólidos em repetidas operações minimalistas. Suas esculturas ambiguamente fractais e monolíticas são aqui apresentadas em bases que repetem a presença do marcante elemento horizontal nas pinturas de Lucena, como em um plinto espraiado que determina uma leve suspensão. Esse sintoma do real, da locação da escultura e da convencionalidade da base permeiam áreas poéticas que enfatizam a ordem do gesto e da transcendência.
A complexidade do trabalho de Camargo se constitui no ponto de inflexão que congrega uma articulação racionalista, a repetir operações formais geométricas, com uma astúcia poética que, além de intrínseca à própria matéria, era ativada pelo cuidadoso sistema gestual e dinâmico de suas composições. O mármore de Carrara, em sua pureza material, apresenta-se como material absoluto, ideal para as experimentações líricas e luminosas em seus arranjos volumétricos. Ainda quando duras em maleabilidade e em léxico formal, suas esculturas propõem aconchegos sólidos gerados por espontaneidades rítmicas, fazendo com que a matéria seja uma ancoragem física em indagações que tendem ao infinito.
Do mesmo modo, a luz embalsamada da pintura de Lucena, construída pela justaposição de dezenas de camadas de tinta a óleo, é atingida a partir da criação de um meticuloso ruído pela adição repetida de massa de tinta. Essa interferência visual, formalmente detectável quando da observação próxima, desempenha papel central na observação das pinturas com distância, ao incitarem um grão luminoso sobre uma superfície aparentemente homogênea. Desse modo, o pintor propõe um minucioso lusco-fusco dentro dos grandes campos de luz, da vibração de uma constelação infinita que emana a docilidade e a força de uma luz que, embora aparentemente contida no retângulo da tela, é sempre apenas citada, homenageada, irrestrita ao plano pictórico por seu aspecto energético e simbólico expansivo.
Os diálogos entre Camargo e Lucena engendram a percepção de correspondências que acontecem em dimensões sensíveis da realidade, seja por afinidades visuais ou por respostas a demandas imateriais transhistóricas. De maneira difusa e sempre presente, ambos os artistas, sejam na pintura ou na escultura, materializam a tentativa do absoluto como um ensaio que recusa o triunfo de um acerto dado e enfatiza o esforço modesto e aventuroso de um diálogo permanente com a matéria artística. Entre planos, entendem a vida e a obra como um palco de propostas.
Mateus Nunes
¹ “Luz gasta” é uma expressão do arquiteto Louis Kahn (1901-1974), utilizada pelo crítico de arte e curador Guy Brett (1942-2021) na epígrafe de um texto sobre o trabalho de Sergio Camargo (BRETT, Guy. “Sergio Camargo: um olhar”. In: Sergio Camargo: Liber Albus. São Paulo: Cosac Naify, 2014, p. 251.)