A PARTE MALDITA: um esboço
“O pobre gosta de luxo”
Joãosinho Trinta
“O ‘luxo’ coloca para a matéria viva e para o homem os seus problemas fundamentais”
Georges Bataille
Em tempos tão conflituosos é difícil especular a razão, a força e a direção de tanta violência que está no ar. Embora vivamos em uma época singular —de acumulação de riqueza material como nunca antes na história da humanidade—, o ódio, o irracional e a vontade destrutiva estão na superfície, impregnando todas as coisas e sentidos prestes a explodir. Uma força, ou energia contida, norteia as relações sociais, as relações produtivas e as relações culturais. Ainda que, por instantes, nos reconheçamos uns aos outros, no momento seguinte parecemos transfigurados, decadentes, desumanizados, apartados uns dos outros, incapazes do gesto mais simples: a dádiva da troca sem compromisso —seja ela econômica, política, social e subjetiva— sem esperar nada em retorno.
Esta energia explosiva se caracteriza pelo imperativo produtivo. Tanto na criação, como no consumo, mas também nas nossas relações mais próximas e distantes, tudo se justifica por ser produtivo. O consumo produtivo, para dentro, que engole tudo que está ao seu alcance, numa acumulação desenfreada, é simultaneamente produção. Produzir e consumir para crescer. A fé de que podemos crescer indefinidamente por meio de uma acumulação incessante guia a nossa moral, a nossa ética e a nossa religião: o consumo é o nosso Deus.
Mas a maldição é que o crescimento não é infinito. Ao fim teremos que dispor dessa energia acumulada de forma improdutiva, desinteressada e avessa ao lucro. A ação mais revolucionária é aquela que simplesmente nega qualquer vontade, desejo ou obrigação de ser produtivo. O herético contemporâneo luxuosamente dissipa, ou dispensa, toda sua energia acumulada de forma improdutiva. Só assim é possível resgatar o jogo, o sexo, o sagrado, a arte, enfim, a vida. Só assim pode-se evitar a guerra total e aniquiladora que nos aparece no horizonte.
Na A parte maldita, —texto de onde extraí o título e a inspiração para esta exposição— Georges Bataille propõe e tenta dar conta desse fluxo contínuo de energia que “o sol dá sem nunca receber”[1]. O problema econômico na sua perspectiva, não é a escassez, mas o seu contrário, o excesso. O excesso de energia que paira sobre a superfície do globo, de onde retiramos as forças para poder crescer, mas que depois, ao alcançarmos a “maturidade”, precisamos gastá-lo, sem nada receber. Em uma analogia com o corpo biológico, que cresce, se reproduz e morre, todo corpo ao completar sua fase de crescimento se torna um exercício de dissipações, de gastos, de dilapidações da energia que não pode mais ele mesmo consumir. Dissipar, dilapidar e gastar o excesso de forma improdutiva é a função da arte, do sexo, das festas, dos ritos, dos sacrifícios, e no fundo, isto é o “luxo que coloca para a matéria viva e para o homem os seus problemas fundamentais”. Do contrário, só a guerra o fará.
O problema da exposição A parte maldita é um paradoxo, ou uma ambivalência, pois justamente propõe fazer sem acrescentar nada. Não como um ato de negação, mas pelo contrário, é um ato de afirmação. A partir de obras de arte que estão no mundo há muito tempo, ou que foram criadas para esta exposição —elas próprias aqui desapegadas de cronologias ou tradições— que evocam o dispêndio próprio do fato artístico; que só é arte se for inútil, e os temas dissipadores onde ela acontece: o jogo, o sexo e a morte.
É o luxo de gastar sem propor uma pesquisa da qual se retira algum conhecimento. Ou melhor, a exposição é como se fosse um ato sacrificial em que o conhecimento gerado seja ele próprio dissolvido, sem que reconduza às coisas subordinadas e manuseadas por ele, sem acréscimos. “O problema último do saber é o mesmo que a da consumação. Ninguém pode ao mesmo tempo conhecer e não ser destruído, ninguém pode ao mesmo tempo consumir a riqueza e aumentá-la”, como bem escreveu Georges Bataille na A parte maldita.
Neste sentido a exposição é um ato de revolta, de insubordinação ao Ser produtivo, ao horizonte cataclísmico da produção e é, principalmente, um ga(e)sto improdutivo.
[1] BATAILLE, Georges. A Parte Maldita – Precedida “A Noção de dispêndio” ed. Autêntica, trad. Júlio Castaño Guimarães. Segunda edição revista. 2013.
Ricardo Sardenberg