No fazer têxtil, a tecedura dá-se propriamente no lado da frente, em oposição ao seu avesso. No entanto, o seu oposto aparente é também incrivelmente relevante: o verso é elemento componente do ato de tecer e une os fios que atravessam o tecido. Verso e anverso são elementos inerentes de uma mesma trama que se amarram em uma existência conjunta inexorável. Nesse contorno, temos Anverso, a mais recente individual de André Azevedo – um verdadeiro convite para infiltrar-nos nas nuances entre frente e verso.
Marshall McLuhan, filósofo canadense, foi um dos pioneiros no estudo da revolução tecnológica e das pesquisas culturais. Poucos autores conseguiram expressar com tamanha sensibilidade como o processo elétrico transforma a realidade humana. Para o autor, o homem é fascinado por qualquer tipo de extensão de si mesmo, seja de qualquer material que não seja o dele próprio. Na década de 60, escreveu que contemplar ou utilizar uma extensão de nós mesmos implica necessariamente em adotá-la. Assim, o uso da tecnologia faz com que o homem seja perpetuamente modificado por ela encontrando sempre novas maneiras de modificá-la, isso personaliza sua permanência no mundo. É nesse cenário que se insere a poética de Azevedo.
As máquinas, a de escrever e a de costura, estão em hierarquia de igualdade com o artista, em uma coreografia de colaborações. Azevedo adotou suas extensões tecnológicas e as transformou em coautoras mecânicas do seu trabalho. O ato é analógico, mecânico, artesanal, uma contagem binária. Seus gestos revelam vontades das máquinas, que por vezes engasgam, travam, pulam, percalços que são incorporados aos trabalhos, em uma abertura ao incontrolável.
O artista consegue criar teias simbólicas e físicas, partindo da sua fonte primordial: a linha. É pela estrutura linear que correlaciona suas séries de trabalhos, ela está presente nas macrocélulas, nos desenhos figurativos e nas datilografias. Em “Versos”, temos um vislumbre da cultura pop, de cenas e poses reconhecíveis a olhares atentos. O desenho que se forma no lado anverso é feito conforme Azevedo costura sem cortar a linha, e somente ao virar a tela tem dimensão da materialidade construída em parceria com a linha e a máquina de costura. O efeito pode ser matérico, emaranhado ou mesmo alisado, sempre um indício da gestualidade maquínica atada à de Azevedo.
A dimensão cromática e escultórica desponta na série “Macrocélulas”, que ficam suspensas no espaço. Sua operação é de cortar, montar, desmembrar e remontar telas após o tingimento de têmpera vinílica com pigmentos sólidos, advindos da indústria têxtil. Ao costurar essas faixas, Azevedo as transforma em formatos variados, ortogonais, quadrados, ou retangulares, engendrando uma trama inigualável que remete ao vestível e ao têxtil industrial, mas que são seu próprio território, seu próprio campo expandido.
É na utilização da máquina de escrever que se abre todo um outro campo de trabalho, em que há simbologias tipográficas, entroncamentos textuais, com ordens numéricas presentes que se perdem no ritmo da própria obra. Neste sentido, a datilografia é ressignificada, as falhas que supostamente deveriam ser apagadas são assumidas, e o emaranhado de letras migram do elemento textual, transformando-se em imagens.
A exposição é, ademais, um retorno à história do artista, a um período em que trabalhou na área da moda e como isso influenciou sua trajetória no desenvolvimento da tridimensionalidade têxtil e em sua capacidade de tecer fibras e transformá-las em enredo, e de tornar-se um artista visual. Nas palavras do artista, fazer arte é descarregar no mundo uma enorme carga de energia de comunicação e Azevedo consegue fazê-lo ao ser metódico e simultaneamente aberto ao risco, à experimentação e ao acaso, com atenção em seu processo de feitura no qual os fios se entremeiam, se entrelaçam. Em Anverso, presenciamos a criação de uma grande trama, um enovelado da mescla de seus profusos vocabulários em um ritmo único tecido por André Azevedo.
Mariane Beline