Representação e corporificação
São incontáveis as histórias sobre a origem do universo, de lendas às teorias da ciência moderna – do Big Bang à criação do mundo em sete dias; da cosmologia in?acionária aos gregos Caos, Nyx e Érebo. As histórias de gênese e princípio, fundantes do sentido e do signi?cado da nossa existência, originadoras de arcabouços de crenças e imaginários, são chamadas cosmogonias – fabulações, hipóteses e abstrações que nos ajudam a lidar com a incomensurabilidade angustiante do universo desconhecido.
Mas não seria, também, possível pensar a cosmogonia na arte, a criação da criação? Nos trabalhos de Emanoel Araujo apresentados na mostra “Cosmogonia dos Símbolos”, essas lendas ganham corpo e forma a partir da mitologia Iorubá, que conta como Olurun (o deus supremo), Olokun (senhora das águas profundas) e Obatalá (criador dos seres humanos) instauraram o nosso mundo. Na série “Orixás”, esculturas representam seres divinos, cada um associado a elementos distintos da natureza – os rios, as matas, as pedras, o fogo, o mar, a terra. Na representação, um elemento grá?co, um objeto, um gesto, traduzem algo maior, uma dimensão ampliada e transcendente que se encena concentrada em um símbolo. No entanto, há certas instâncias em que emblema e entidade se confundem em uma espécie de encarnação matérica, na qual o objeto não mais representa algo, mas torna-se aquilo.
É como se essas peças-orixás não mais fossem alegorias às deidades que deveriam representar, mas sim as incorporassem encarnadas na tinta, na madeira, no metal, no espelho, nas conchas e búzios. Assim, os trabalhos têm presença gravitacional: reside nelas uma força telúrica que os deixa assentados, quase aterrados. Por outro lado, esses corpos-objetos totêmicos parecem também carregar uma qualidade etérea, anímica, como se recebessem o emi, o sopro da vida. Essa ligação divina é reforçada pela verticalidade das obras, o que potencializa a percepção de um ajuntamento entre planos terrestres e astrais, um vínculo inquebrável consubstanciado no próprio material.
A exposição também conta com 4 trabalhos de Rubem Valentim: pintor que, com maestria, sintetizou elementos do candomblé em uma singular linguagem construtiva – seus títulos, “Emblema”, aludem à força simbólica dessas obras. A aparente simplicidade das formas, a simetria e a disposição verticalizada de parte das composições, tornaramse marcas da produção de Valentim a partir do ?nal dos anos 1950. Essa redução e condensação construtivo-geométrica poderia tensionar a carga icônica dos elementos do Candomblé mas, em realidade, a ?liação às raízes africanas dessa geometria só potencializa os elementos grá?cos como Oxê, o machado duplo de Xangô; o arco e ?echa, Ofá, de Oxóssi; a espada de Oxalá, chamada Idá; a coroa de Iemanjá. Essas e outras alegorias grá?cas também emergem de dentro das obras de Araujo, uma vez que o artista incorpora, em parte de seus Orixás, pinturas inacabadas de Valentim.
Deste modo, apresentados em diálogo, esses trabalhos parecem espelhar, ecoar uns aos outros, complementando-se em um encontro potente e polissêmico. Ambos os artistas, interessados igualmente pelo universo religioso do candomblé e também pelos cânones da geometria na arte, buscam em suas obras uma síntese do que os interessa nas relações possíveis entre racionalidade e espiritualidade, entre cor e forma, entre material e signi?cado, passado e futuro, simbologia e concretude.
Julia Lima