“A festa é o lugar do encanto”
E a festa é, também, o lugar do encontro...
O trabalho de Sergio Lucena acontece em dois lugares: um, matérico, profundamente ligado à cor, à textura, às incontáveis camadas de tinta, às linhas, nuances e manchas; e outro, metafísico, que corresponde à dimensão anímica da pintura, capaz de revelar estados de espírito e provocar reações afetivas, íntimas, viscerais. Essa dualidade informa sua produção há vinte anos, desde as primeiras paisagens figurativas, até os vibrantes campos coloridos, construídos arduamente sobre o peso acumulado do óleo, passando por sugestões geométricas misteriosas e composições orgânicas. Inserida neste panorama está “Festa do Interior”, sua primeira individual no espaço de São Paulo da Simões de Assis, na qual se apresenta diferentes agrupamentos e séries.
Primeiro, há um corpo considerável de pequenos formatos, esforço recente que contrasta com as grandes telas que o artista costuma criar. Como diminutas janelas verticais, um conjunto de pinturas abstratas ostenta, por entre estreitas faixas laterais de pigmentação sólida, gradações de matizes mais suaves, marcados volta e meia por outros mais intensos, carregados. É uma estrutura um tanto rígida que ladeia uma superfície pictórica fluida, engendrando uma espécie de moldura de tinta que denuncia os pontos de partida da obra, ao mesmo tempo que aponta para onde ela quer caminhar. Contudo, a parte superior da composição fica aberta ao céu, sem essa tarja, tal qual um receptáculo exposto às intempéries imateriais. A luz contida nessas peças ora adentra o campo de cima, escorrendo, banhando-o; ora parece emergir das bordas e do fundo, como se sendo absorvida.
Em um segundo momento, outros dois grupos de trabalhos de escala igualmente reduzida revelam composições inéditas para Lucena. Formadas de geometrias simbólicas preenchidas por tonalidades pastéis e chapadas, suas laterais são marcadas não por cor, mas pelo linho cru rústico que insiste em irromper pelas beiradas. É a tela fazendo a vez de tinta. Essas obras invocam, de maneira menos latente e mais consciente, ícones espirituais, ao mesmo tempo que evocam as arquiteturas vernaculares que habitam há muito o imaginário do artista. São a reverberação da espiritualidade combinada à imagem das paredes caiadas sob as beiras retas que sombreavam as janelas das casas e vendas pelas ruas de paralelepípedo do interior – reminiscências resgatadas e reconstruídas de sua infância no sertão da Paraíba, um lugar primordial, fundante para seu interesse pela luz, pela natureza e pelo arrebatamento com o sublime das vistas que se fixavam em sua retina.
Nesta mostra há também trabalhos de proporções extensas, como "Festa do Interior no. 13” e “Festa do Interior no. 16”, pintadas com tons de rosa e azul deslavados, de saturação amena. Elas se comportam quase como irmãs, similares mas diferentes: uma é mais fria, a outra é mais quente; uma é gráfica, a outra, orgânica; uma é chapada, a outra tem gradientes intrincados, em infinitas nuances. A escolha das cores remete, outra vez, à cultura folclórica do interior, mas também a uma memória da arte moderna no país, que muito se valeu das tradições populares – tanto na temática, quanto na estética. De certo modo, são os mesmos rosas e azuis caipiras (outrora até considerados cafonas) que marcaram a produção de Tarsila do Amaral depois de seu retorno ao Brasil, frequentemente aplicados ao casario estilizado em bandeirinhas das têmperas de Alfredo Volpi, ou a alguns céus de Guignard.
Por fim, como uma espécie de amálgama-síntese da exposição, uma obra de grande escala carrega o elemento geométrico como protagonista – algo entre o sagrado ancestral e a arquitetura popular que já emergira nos trabalhos miúdos. A figura ganha contornos de uma pirâmide dourada ascendente, pairando sobre um azul solar, vigoroso, ladeado por faixas verticais de subtons também cerúleos. De alguma maneira, mesmo que numa paleta muito distinta, a composição parece retomar a série de pinturas para o templo, criadas por Hilma af Klint há mais de 100 anos (lembrando, especialmente, as peças do altar).
Assim, “Festa do Interior” é uma grande celebração dos valores que conformam esse rico arcabouço de distintas referências: do coração da cultura do sertão, ao caráter lúdico da arte, passando pelo encantamento com a natureza, pelos alicerces das construções vernaculares, pela energia dos símbolos de religiosidades sincréticas, e até pelos fundamentos do modernismo brasileiro. A perspectiva operada reiteradamente pelo artista ao atravessar todas essas esferas é a da afirmação do belo como ingrediente indispensável à vida: adentrar o espaço expositivo é sentir, de imediato, a atmosfera luminosa de júbilo e festejo que transborda por todos os lados. Mais do que falar de um mundo que já existe (e que, francamente, se encontra em ruínas), esta mostra de Sergio Lucena nos ajuda a imaginar outros mundos possíveis, nos quais a luz, o brilho, a paisagem, a natureza, a memória, o popular e o erudito, a tradição e a transformação, o fantástico, o místico e o extraordinário possam insurgir nossos modos de ser e de criar.
Julia Lima, julho de 2022