A Alteridade Sensível
Em mais de quinze anos de carreira artística, o trabalho de Flávio Cerqueira tem sido uma investigação multidirecional sobre a existência e a experiência do ser humano na sociedade contemporânea. As esculturas figurativas de Cerqueira são frequentemente estátuas não-monumentais em escala tamanho real, retratadas como adolescentes entre uma ação na sua própria temporalidade, ou por vezes explorando a sua própria materialidade. A expressão facial neutra, juntamente com o vestuário cotidiano das esculturas, diminui as potenciais interpretações que fazem referência a arquétipos da vida real, e são, portanto, autônomas, alegóricas e semioticamente indexadas.
Para Cerqueira, a adolescência representa o status de indeterminação, o período de transição da vida que reúne a consciência do eu e do outro, bem como a mentalidade mista de esperança, apreensão, desejo e inquietação em relação ao futuro. É uma condição em que a percepção de si próprio se torna possível ao tornar-se o seu próprio estranho, citando Walter Benjamin, “A sensibilidade leva-nos para fora de nós próprios”[i]. Para o público, a percepção da obra é também um processo de reconhecimento da semelhança na alteridade e de reflexão sobre a sua condição face à alteridade da escultura.
As obras de Cerqueira, por sua vez, dialogam com o público por meio de objetos da vida cotidiana que são feitos para serem associados a eles: velas acesas à mão, balões tocando o teto, um espelho encostado na parede. Mas o diálogo também pode ser construído com elementos ambientais e não relacionados a objetos, como água, tinta, texto ou, como em No meu céu ainda brilham estrelas (2023), é a luz que passa pelos orifícios do livro fundido em bronze. Esses objetos e elementos atuam como intermediários, fazendo a ponte entre o mundo das estátuas e o nosso, por meio do qual Cerqueira convida o público a se posicionar ao lado dos personagens, permitindo que a experiência da realidade compartilhada promova a narrativa e a comunicação. Como Lilia Moritz Schwarcz observa, cada uma das esculturas traz “uma história que começa e termina com ela”[ii].
Voltando a 2001, Cerqueira estava entre os 300.000 visitantes das duas exposições históricas da Pinacoteca de São Paulo: Auguste Rodin: Esculturas e Fotografias e A Porta do Inferno. A escolha de Cerqueira pela técnica laboriosa e demorada de fundição de bronze é inspirada no mestre modernista. Cerqueira está interessado na incorporação das condições humanas dentro da materialidade das esculturas, mas, em vez de adotar o torso retorcido e a postura corporal teatral do período clássico, ele estendeu a articulação da escultura para o espaço de exposição, construindo relações com seu entorno e, muitas vezes, correlacionando-se entre si.
A nova série de trabalhos para a exposição Eutonia, na Simões de Assis, em São Paulo, consiste em seis esculturas e duas peças de parede, todas criadas em 2024. Ligadas livremente ao tema e à iconografia, as obras formam um ciclo de contemplações semiautobiográficas sobre a vida: da recepção à contribuição, da confusão à revelação e da dor à cura. Como o título da exposição sugere, cada trabalho é um equilíbrio de tensão manifestada e cristalizada na forma de escultura.
Nunca foi a primeira opção e Não estou no meu passado tratam do enigma da linguagem e do esforço da vida. Ambas as obras também refletem sobre a experiência das temporalidades, que, de acordo com Russell West-Pavlov, está na generatividade da narrativa[iii]. Na primeira obra, um menino de boné está escrevendo o título na parede. Para Cerqueira, rejeitar a opção inicial da vida significa romper com o confinamento e a opinião estereotipada dos outros e estabelecer-se no controle de sua vida. Não estou no meu passado é inspirado na escarificação, uma modificação permanente no corpo tradicionalmente praticada por muitos grupos étnicos na África para transmitir status social e ideologia espiritual. Projetadas para formar cicatrizes no processo de cura, as marcas de escarificação são tanto o resultado de uma ferida passada quanto uma mensagem para o futuro. E nesse trabalho, a rejeição não é negar a experiência passada, mas reconhecer a cura por meio do dinamismo do tempo.
Em comparação, Desenho cego mostra uma destruição radical e aguda do corpo. O personagem, segurando uma ferramenta de escultura na mão direita, está cortando uma longa ruptura da mão esquerda até o peito, enquanto seus olhos são apenas várias fendas no rosto. Nesse momento Pigmaleônico invertido, o autônomo da escultura iniciou um momento surreal de transformação da materialidade, mas também revelou o processo de escultura frequentemente negligenciado: a textura flexível da argila de modelagem. Enquanto Para voltar a ser eu apresenta uma forma alternativa de restauração, ouvindo e aprendendo consigo mesmo.
É melhor nem saber e Só eu sei abordam os dilemas da vida social contemporânea e, mais uma vez, questionam o discurso “externo” de regulamentação e disciplina. Em ambas as obras, o ato de saber está voltado para o invisível, seja o espaço virtual e os acontecimentos por trás da parede da galeria, seja a entidade que existe apenas parcialmente como duas mãos. Em Só eu sei, a própria personagem também está incompleta: a carne das pernas está cortada acima dos tornozelos, os braços estão bem abertos, mas as mãos estão faltando. Quem tirou suas mãos e quem a forçou a sorrir? A incompletude traz virtualidade e incerteza, o que ecoa a descrição poética de Foucault da demagogia e do poder de vigilância que nega o corpo para garantir a soberania de uma ideia atemporal, para adotar um anonimato sem rosto e se tornar um guia para a lei inevitável de uma vontade superior. [iv]
E, finalmente, em O jardim das dádivas e Revelação cósmica, encontramos esperança e conforto. Em Revelação cósmica, o invisível não é mais disciplinador e manipulador, mas oferece força e sabedoria. Como peça central da exposição, O jardim das dádivas cria uma ilha meditativa dentro do espaço da galeria, com o personagem voltado para a frente, mas regando um jardim às suas costas. Para Cerqueira, “atrás” é tanto temporal quanto espacial: o jardim simboliza o legado que deixamos para o mundo, mesmo que seja algo que não vemos com nossos próprios olhos. E como um presente, o jardim - e talvez também a arte - é um compromisso permanente de reciprocidade com o que recebemos do universo na vida.
Zoe Diao
[i] Citado em Michael Taussig, Mimesis and Alterity: A Particular History of the Senses (Nova York e Londres: Routledge, 1993), 38.
[ii] Lilia Moritz Schwarcz, “Flávio Cerqueira, Um Escultor de Significados” (Galeria Leme, 2021).
[iii] Russell West-Pavlov, Temporalities (Nova York e Londres: Routledge, 2013), 83.
[iv] Michel Foucault, “Nietzsche, Genealogy, History” em Language, Counter-memory, Practice: Selected Essays and Interviews (Ithaca: Cornell University Press, 1977), 158.