Transcriações
Há bilhões de anos, o Big Bag, um estado inicial de matéria densamente concentrada, explodiu em incontáveis galáxias, sóis, estrelas, sistemas e planetas. Toda a vida, todas as coisas, se originaram naquele instante, e cada átomo do Universo que se formava continua a existir até hoje (e para sempre), já que a matéria apenas se transforma, nunca se cria. As partículas que formam tudo que existe, dos corpos humanos aos celestiais, das bactérias às baleias, das espécies extintas ao combustível fóssil, são as mesmas desde o início dos tempos, em mutação eterna.
Em “Espelho da Matéria”, Frank Ammerlaan explora materiais que são inusuais nas práticas artísticas contemporâneas, investigando profundamente os elementos que conformam seus trabalhos ao extrair deles suas propriedades estéticas. Essa mostra é dividida em quatro conjuntos, cada um revelando à sua maneira o interesse do artista em manipular produtos químicos, metais, minerais e substâncias orgânicas. Em um processo que poderia ser descrito como alquímico – não por sua dimensão espiritual, mas pela associação entre a qualidade intuitiva e experimental da obra do artista com sua abordagem científica –, Ammerlaan articula gestos pictóricos e esculturais com suportes que normalmente são estrangeiros ao fazer artístico e mais comuns em indústrias ou laboratórios, atuando como um agente da transformação.
Ao entrar na galeria, o público já se depara com a maneira de pensar do artista traduzida na primeira parte da exposição. Chapas de aço corrugado dão as boas-vindas aos visitantes com sua superfície solar reflexiva. Essas chapas não foram apenas amassadas e golpeadas para formar volumes e relevos, mas também foram submetidas a banhos químicos – o que leva à formação de uma camada de zinco em suas superfícies. Depois de terminadas, as placas começam a oxidar, mudando de cor e forma. O artista colabora e conta com os processos naturais, ao empregar materiais industriais típicos da construção civil deslocados para dentro do ateliê, expondo-os a processos químicos e assumindo as reações físicas espontâneas que se desencadeiam em seguida.
Em outros trabalhos metálicos, o uso de chapas de chumbo poderia apontar para a criação de peças tridimensionais massivas. No entanto, o material é dobrado, vincado, amassado, entortado e inflado, lembrando superfícies macias e almofadadas feitas de tecido. Esses objetos volumosos são exibidos pendurados na parede, jogando com as essências escultural e pictórica dessa produção. É também interessante notar o desafio físico imposto ao dobrar e entortar um material surpreendentemente maleável, flexível, e igualmente pesado e denso. O corpo precisa lutar com o metal. Mas não é apenas a mão do artista que produz essas peças: o chumbo também muda de cor ao passar pela oxidação, mudando de um azul acinzentado brilhante para uma tonalidade plúmbea opaca. A natureza, novamente, atua como uma espécie de coautora das obras.
Ammerlaan também explora meios pictóricos mais tradicionais, em pinturas que evocam as manchas de derramamento de óleo no oceano. Em uma primeira visada, os trabalhos aparentam ser resultado de pinceladas sobre a tela, mas novamente o artista despista o espectador ao jogar com a percepção – às vezes há uma distância cósmica entre o que uma obra é e o que ela aparenta ser. Essas telas são, na verdade, cobertas por um primer e, então, passam por diferentes banhos químicos que geram as formas, as cores e a luminosidade. Ao abrir mão do controle sobre o resultado final, este método se baseia em tentativas e erros, e as condições de temperatura e umidade e a ordem dos químicos usados tem de ser precisas, ainda que não se saiba como a pintura emergirá.
Por fim, há um corpo de trabalhos na exposição que é inicialmente composto por elementos que foram criados pela natureza e depois apropriados pelo artista. No entanto, sua origem é desconhecida. As pinturas são produzidas com partículas de meteoritos: detritos do cosmos que entraram na atmosfera terrestre e atingiram sua superfície. Sua composição metálica ou rochosa é extremamente densa, muitas vezes são magnéticos, e os cientistas até descobriram que fragmentos datados de 4,5 bilhões de anos atrás podem ter carregado água e matéria orgânica quando caíram na terra. É bastante impressionante ver como esses pedaços antes gigantescos e agora minúsculos do início do nosso universo podem ser transformados em uma pintura. A contradição entre a magnitude violenta de asteroides que tem a capacidade de destruir a vida neste planeta e o ato singular e sublime da criação artística é fundamental nestas peças. No entanto, como sabemos agora, nada está realmente sendo criado, tudo está apenas sendo transformado – seja pelos processos naturais, seja pelas mãos de Frank Ammerlaan.
Julia Lima