Contas e fermatas de Gonçalo Ivo
A trilha sonora que acompanha as visitas abriu caminho para um panorama eclético, de convivência tranquila entre o popular e o erudito, o clássico e o contemporâneo, as nuances mais idiossincráticas do pop. Também o prelúdio para esses percursos, uma extensa série de aquarelas pequenas, de 1981, encadeia transições graciosas entre figuração e abstração, algo que poderia se sustentar por muito tempo ainda, como no caso emblemático de outros artistas, nessa mesma década, que vemos ali através de uma assimilação rara e cristalina do estilo do outro.
Em um segundo momento, o percurso apresenta uma posição diversa. Suas séries de pinturas são extensas e a dimensão das obras é algo com o que não convivemos, no Brasil, muito menos com a naturalidade do ambiente doméstico. Nelas, de qualquer ponto que se olhe ou a partir de quaisquer arranjos nos conjuntos, não encontramos espaço alheio ao compromisso com a valorização das relações já constituídas na tradição e o prolongamento das mesmas em transições por suportes diversos, por papel, tela, cartão, madeira, fórmica, quase como se buscasse um antagonismo essencial, uma diferença que renove um mesmo pintar. De outro modo, essa incrível concentração no pictórico, a concepção e construção desses estúdios confirma o propósito de integração entre as linguagens de maneira paralela à da teatralidade assumida no contexto “pós-moderno” como projeto de ampliação dos modos de inscrição da subjetividade do artista na instituição das artes, das interseções entre “arte e vida”.
As telas de José Maria Dias da Cruz, que salpicam em alguns desses cômodos, reafirmam a reverência de Gonçalo por esse ponto de vista que permita uma fermata injustificável durante a qual o pintor possa recondicionar todos os expedientes formais, medir obstinadamente o peso de todos os esquemas e de todo tipo de abstração, do teor da linha em relação ao plano integral dos quadros, a hierarquia entre os procedimentos técnicos, as variações mais ínfimas entre os materiais e a convergência de tudo mais para realidade adjetiva da cor. Por isso também, a proposta que definiria a expressão nacional pela assimilação crítica, consumação ritual, paródia em clave antropofágica, qualquer tipo de “volta à pintura” é tida como mistificação porque para esse artista, desde que integrou a mostra “Como vai você Geração 80?”, a pintura nunca saiu de cena e precisa ser experienciada por meio da exegese do pormenor.
As “fórmicas” que abrem a presente exposição podem ser vistas como instância de resistência dentro da ortodoxia que marca esse fiel plano de trabalho de Gonçalo Ivo. Comentam, certamente, a questão dos limites da pintura, da monocromia, e são as obras expostas que problematizam na tonalidade mais aguda a questão da destilação dos componentes literários no campo da plasticidade pura. Nelas, chega a haver mesmo um certo despeito em relação ao óleo, seu presumido desconserto ao ser condicionado de modo tão econômico à anodinia implacável do minimalismo. Talvez só aqui a pincelada surja como resquício, uma sobra parca que acaba como que se precipitando qual poeira no vidro. Indicam, de qualquer maneira, que Gonçalo já não desejou lidar com tinta e suporte na mesma dialética que conhece como poucos e essa falta de sincronia entre as velocidades da matéria e do plano e a dominância da superfície dão o protagonismo a algo típico do universo industrial. A partir desse limiar, considerando posteriormente o período de residência do artista na Albers Foundation, em Connecticut, durante a pandemia, como se ao respeitar um novo ciclo de consistência e fragilidade inédita, se engendrasse uma transformação sutil, mas substancial, em sua poética.
Nessas suas Contas de Vidro, encontramos um eco dos color charts experimentados por alguns pintores brasileiros, na década de 1970 e início da década de 1980, numa aproximação outra com a arte conceitual, como Claudio Tozzi e o próprio Dias da Cruz, algumas vezes acompanhados pelos nomes das cores inscritos na tela com tipografia neutra e estruturante. Uma última tentativa de abordagem do problema do aspecto substantivo e a vocação à pura qualidade das cores que apareciam em frações tênues, inéditas, de primárias a complementares, querendo como que se descolar do plano, às vezes até por um pontilhismo cítrico, um desejo de estar aquém dele. Em meio a essa possibilidade de serialização dos componentes formais, a ideia de que podem ser empilhados a despeito de uma sintagmática absolutamente saturada, a forma como a aquarela agencia naturalmente o pigmento em meio a uma densidade muito diversa da do óleo, uma técnica que Gonçalo sempre cultivou em seus numerosos cadernos, lhe permitiu dissolver as tensões e atritos como que por penetração microscópica, intrínseca, qual dinâmica de um foco com densa cromossaturação que, a partir da presença do natural, líquido, de um átimo a outro, entra em dispersão gradual e incomensurável.
O regime de absorção do papel em relação à tela, como se sabe, também é bem diverso, de uma tradição em que os dualismos frequentemente se borram nas meditações de uma orientação muito menos ansiosa. A reafirmação do pigmento como elemento último de convergência, algo que se sobrepõe às discussões sobre o suporte, os ímpetos ou gestos mais ou menos engajados, é estabelecida como seu único lugar de fala. Nele, afirma, com sua voz sempre calma e precisa, que a capacidade de ler e transmitir mensagens com maestria, sem resistências ou ressentimento de uma personalidade indiscreta, é mais vital para a nossa época do que toda assim chamada atividade artística.
Rafael Vogt Maia Rosa, outubro de 2020