Frank Ammerlaan – Iron Mountain
À primeira vista, o trabalho de Frank Ammerlaan chama a atenção por seu acabamento impecável e pela precisão na execução de formas que possuem um aspecto quase industrial. Muitas de suas séries apresentam um rigor geométrico nos padrões que organizam um espaço pictórico composto por elementos ortogonais e chapados que são combinados à superfícies caracterizadas por manchas, texturas e seções cromáticas irregulares. De maneira análoga, as esculturas produzidas com chapas de metal galvanizadas adquirem uma morfologia híbrida que resulta de procedimentos que envolvem tanto o planejamento quanto a aleatoriedade. Este embate constante entre ordem e caos é algo que atravessa toda a produção de Ammerlaan, mas que não se restringe a uma discussão puramente formal. Para além da justaposição dos elementos tipicamente associados à vertentes artísticas históricas divergentes (Construtivismo, Expressionismo Abstrato, Minimalismo, Art Informel, entre outros.), o que está no centro de suas preocupações é o potencial expressivo e simbólico dos materiais.
As séries de trabalhos apresentadas em Iron Mountain (Montanha de ferro), sua segunda exposição individual na SIM Galeria, compartilham o uso de materiais incomuns em sua feitura e cuja aplicação prática é resultado de processos de pesquisa e desenvolvimento intensivos por parte do artista envolvendo a participação de especialistas de diferentes indústrias. Grande parte desses materiais consiste em elementos encontrados em nosso entorno e que, em seu estado bruto, não seriam utilizáveis como pigmentos. É por isso que, ao descrever sua metodologia de trabalho, Ammerlaan frequentemente a compara à alquimia, pois sua produção está quase sempre calcada no processo de transmutação da matéria. Embora tenha cumprido um papel importante no desenvolvimento da ciência moderna, a alquimia abrangia ainda uma dimensão filosófico-espiritual, o que constitui um aspecto igualmente relevante em sua obra.
Nos últimos anos, o artista vem produzindo uma série de pinturas sobre tecido construídas a partir de procedimentos e materiais distintos que parece sintetizar, de certa forma, o duplo caráter científico/ filosófico-espiritual relativo a prática alquímica. Num primeiro momento, cortes de tela ou linho crus são colocados ao ar livre e ali deixados ao efeito das intempéries por um determinado período. Com o passar do tempo, as tramas desses tecidos se tornam impregnadas pela ação da chuva e da luz solar, bem como pelas partículas de poeira e poluição que circulam invisíveis à nossa volta. As manchas orgânicas que se condensam de forma indiscriminada sobre a superfície funcionam simbolicamente como registros da passagem do tempo sobre o material: índices de um tempo estendido o suficiente para que as marcas se tornem visíveis; sejam dias, semanas ou meses.
No entanto, as pinturas nas quais essas fazendas são utilizadas incorporam, ainda, pedaços de tecidos que remetem a uma temporalidade que extrapola a nossa capacidade de apreensão. A ficha técnica dessas obras nos revela, surpreendentemente, que um dos pigmentos empregados pelo artista consiste em nada menos que partículas de meteorito pulverizado, material originado nos primórdios de nosso sistema solar. É importante mencionar os esforços dispensados por Ammerlaan na obtenção das rochas de meteorito, sempre adquiridas de fornecedores capazes de assegurar sua procedência por meio de laudos emitidos por instituições científicas. Além disso, a viabilização do processo de transformação do material em partículas é parte integral da pesquisa do artista. Aplicada ao tecido como um pigmento, a poeira de meteorito se torna uma espécie de materialização de uma idéia abstrata, na medida em que se apresenta como evidência de uma grandeza de tempo inconcebível no âmbito da existência humana. Daí o seu caráter filosófico-espirtual que, de um lado, coloca em perspectiva a enorme distância que separa os tempos cósmico e terreno e, de outro, pressupõe uma crença em conceitos cuja complexidade ultrapassa em muito nosso poder de imaginação. Não seria, afinal, o misticismo uma tentativa de dar conta daquilo que diz respeito ao desconhecido?
Em paralelo à incansável experimentação com diferentes tipos de matéria, a geometria cumpre um papel fundamental na realização de seus trabalhos. As obras de tecido, por exemplo, são meticulosamente construídas como patchworks a partir de retalhos recortados ortogonalmente e costurados a fim de criar padrões que encontram uma espécie de equilíbrio visual, organizando a matéria sobre a superfície da tela. Essa característica é igualmente pronunciada na série de pinturas em que utiliza partículas de metais crus que são empregadas como pigmento, de maneira análoga a seu trabalho com o meteorito. Desenvolvidos junto a profissionais do ramo da química, esses ‘pigmentos metálicos’ são aplicados sobre a superfície da tela, criando um campo abstrato formado por micro-partículas de coloração vibrante e iridescente produzidas pelo acúmulo da matéria em seu estado bruto. Em muitos casos, esses campos – que curiosamente lembram paisagens cósmicas - são atravessados por uma grade precisa que exibe segmentos preenchidos por blocos de gradientes de cor, sendo que alguns desses elementos geométricos são construídos pela ausência de pigmentação, deixando exposto o tecido do suporte. Nessas pinturas, a geometrização do espaço parece evocar a estética dos gráficos que auxiliam na visualização de dados numéricos, embora aqui sua função esteja restrita à organização do próprio espaço pictórico.
O metal é também submetido a um processo de transformação no conjunto de objetos de parede que integra essa exposição. Nessa série, que já vem sendo desenvolvida há alguns anos, Ammerlaan utiliza um processo industrial bastante difundido, mas que deve ser adaptado para suprir as exigências de seu projeto. Utilizada na fabricação de parafusos ou componentes metálicos, a galvanização consiste em um processo químico de aplicação de uma camada de zinco sobre superfícies de aço a fim de evitar a corrosão do material. Ao serem banhadas em zinco, as superfícies dos objetos adquirem uma gama de cores que se fixa de forma aleatória, e por esta razão a técnica é geralmente utilizada em elementos que não ficam aparentes na construção. O artista, por sua vez, decidiu aplicar este processo no revestimento de chapas metálicas, ou seja, em superfícies muito maiores do que aquelas utilizadas na produção industrial. Os primeiros experimentos foram realizados com chapas de aço e, mais recentemente, o artista passou a utilizar as folhas de chumbo devido a maior maleabilidade do metal. Nesses trabalhos, a falta de controle da coloração da superfície da escultura é equilibrada pela manipulação calculada do material mole: as dobras em sua superfície criam grades semelhantes àquelas encontradas nas pinturas, ao mesmo tempo em que adquirem colorações distintas em virtude da mudança nos ângulos de refração da luz em sua superfície. Paradoxalmente, na construção desses trabalhos a incerteza está vinculada à etapa que diz respeito à produção industrial, enquanto o controle se dá apenas no momento artesanal de manipulação e dobradura das chapas.
Não seria justamente na coexistência de dimensões paradoxais que o trabalho de Ammerlaan encontra afinal sua potência? Ao dedicar-se a uma pesquisa especulativa que parte das propriedades intrínsecas aos materiais, o artista permite a coexistência de conceitos e dimensões tão díspares quanto o rigor e a falta de controle, a ciência e o misticismo e, acima de tudo, os mundos físico e metafísico.
Kiki Mazzucchelli