O elogio do encontro
Uma garota se curva até o solo e nesse movimento suas costas desenham um arco que casualmente ecoa e dá novo sentido ao conjunto de árvores que estão ao fundo. Figura e fundo, assim captados, não podem mais se dissociarem diante de nossa visão. Ambos passam a ter uma conexão física tão intensa, que tendem a deixar de ser primeiro e segundo plano, para se manifestarem como uma superfície homogênea.
Julia Kater cria, em diversos momentos de sua trajetória como artista visual, hiatos que interrogam a fotografia no seu nascedouro. A linguagem que surgiu com a intenção de mimetizar a realidade por meio da perspectiva renascentista – criando assim a ilusão de tridimensionalidade num suporte plano – vê-se desvelada dessa pseudo potência nas várias estratégias criadas por Kater.
Kater parece sequestrar as distâncias entre aqui e acolá, entre o que está próximo e o que parece distante. Ao subtrair esses espaços que distam figura e fundo, os corpos se amalgamam em sobreposições que sugerem novos desenhos, novas intersecções que criam um novo e inesperado organismo. Inesperado? Talvez nem tanto para quem, no desafio de observar atentamente a paisagem e seu entorno, perceba cenários em movimentos contínuos, que se alternam e se recombinam o tempo todo. As séries de Kater nos dizem que nada é estático, tudo está apto a ser recriado com novas informações, cores e texturas.
Ao raptar os espaços que a fotografia, de fato, não nos mostra – mas para os quais nossa percepção visual foi culturalmente treinada pela história da arte e da representação para assimilá-los – Kater cria colisões que geram o que podemos nomear de eventos escultóricos efêmeros.
As inéditas obras da série "Um e Outro", criadas para essa primeira individual de Kater na SIM Galeria, apontam novos desdobramentos na busca incessante por esses eventos escultóricos fortuitos, que a artista tem apreendido nos últimos anos. Os planos fotográficos agora se rebelaram a ponto de escaparem da moldura que os encerravam, como nas séries "Ao Mesmo Tempo" e "Lugar do Outro", por exemplo.
Essa inesperada cisão, que gera dois corpos isolados, traz elementos renovados para as relações entre figura e fundo e parece criar um novo foco de interesse da artista, que consiste na fatura quase impossível de se representar no mesmo plano, que é a relação entre o observador e o que este observa na paisagem.
Novamente uma garota – será a mesma que curvou as costas diante das árvores? – sugere com sua postura, que está observando algo num horizonte que não nos é possível enxergar. Apenas sugere porque Kater oblitera nossa visão do rosto da garota interceptando-a bruscamente com outro quadro, outro plano. Somos levados instintivamente a pensar em causa e efeito: a garota flerta com a paisagem e, nessa deambulação, ela é envolvida quase inteiramente por aquilo que vê.
Se nas séries anteriores o evento escultórico se dava pelo confronto e justaposição de dois corpos distintos, que tendiam a criar um novo desenho-organismo, agora em "Um e Outro", temos um observador que é tomado por aquilo que ele observa. É ele quem elege na paisagem o elemento que irá transformá-lo. Nessa inversão sutil de ponto de vista, a artista parece se ausentar momentaneamente e deixar de orquestrar os encontros entre figura e fundo, para que o observador fotografado por ela lhe indique aquilo que tem o poder de transformá-lo pelo sentido da visão.
O estilete com o qual a artista criou as conhecidas incisões na superfície das suas fotografias, para revelar novas camadas significantes sob a paisagem, nesse instante foram transferidos para os olhos dos personagens que ela encontra em seu cotidiano.
Escultóricos, orgânicos e desafiadores, esses novos trabalhos de Julia Kater fazem uma espécie de elogio ao encontro entre pessoas, paisagens e histórias. Afinal, são sempre os encontros que nos propiciam transformações nos roteiros que seguimos, desenhando no fluxo contínuo da vida.
Eder Chiodetto