Juntó
A obra de Ayrson Heráclito deriva da ideia de sagrado expressa na ritualística e na simbologia do Candomblé, religião que pratica há quase trinta anos. Informado e instigado pela cosmovisão afro-brasileira de orixás e voduns, sobretudo da tradição Jeje-nagô, o artista recorre a linguagens diversas em trabalhos que exploram a matéria orgânica mobilizada pelos ritos dessa matriz até o limite da plasticidade e da significação. Com frequência, tiram partido também de seu sentido de performance, de transe, de ato mágico em que se evocam, purificam e reorganizam energias, histórias e memórias de herança negra e de violência colonial.
Juntó reúne exemplos recentes de sua produção. A série homônima lida com insígnias e ferramentas relacionadas ao panteão do Candomblé, dialogando com a ideia da conjunção de entidades que preside cada cabeça humana. Se na astrologia as energias dos corpos celestes desenham diferentes eixos de influência com sua posição na hora do nascimento, no Candomblé cada pessoa é regida por pelo menos dois orixás, um principal e um complementar. O conjunto inclui aquarelas, desenhos e a escultura Juntó, inaugurada esse ano no bairro do Comércio, em Salvador. Para homenagear Mestre Didi, Heráclito amalgama na peça, em forma de totem, símbolos ligados a Xangô, orixá regente do artista, sacerdote e escritor baiano, e Obaluaiyê, seu juntó.
Nas imagens do ensaio fotográfico Narrativas de Abebê e Ofá, o artista invoca insígnias e atributos dos orixás Oxum e Logunedé para compor retratos povoados de narrativas. A obra se integra à investigação de pós-doutorado de Heráclito, professor da Universidade Federal do Recôncavo Baiano, sobre a criação de imagens como “devir ritual”; nascidas de um ato ritual, elas carregam o conceito iorubano de uma temporalidade multidimensional. Ressaltando – no ouro da cachoeira, no azul da cauda do pavão, no preto da pele – a qualidade divina dos elementos que ganham corpo nos orixás, o ensaio serve ao propósito declarado de produzir, a partir desses saberes ancestrais, “uma poética visual que afirme a proteção e regeneração do meio ambiente”.
Como em toda a obra de Heráclito, a essência e os elementos visuais da religiosidade trazida por escravizados/as para as Américas e o Caribe são evocados como forma de resistência. Nas diversas frentes em que se dá e se elabora sua pesquisa, o artista indaga como o conhecimento pré-colonial africano pode, a partir de uma perspectiva não europeia, inspirar o mundo contemporâneo – dos primeiros exercícios em torno do azeite de dendê a Sacudimentos, em que conduz um ritual de limpeza espiritual em marcos da escravidão na Bahia e na África (a obra esteve na 57ª Bienal de Veneza em 2017 e integra a primeira individual carioca do artista, Yorùbáiano, no MAR).
Transitando com grande fluência entre a espiritualidade, a produção de visualidade, a reflexão acadêmica e a ação política, Heráclito é explícito quando diz que quer “agir, de forma simbólica, nas consequências devastadoras do racismo e da desigualdade social que afetam as populações negras em todo o mundo”. Ao recorrer à potência mágica do legado afro-baiano para confrontar e transmutar poeticamente a ferida corpórea e imaterial da escravidão, oferece às práticas ditas descoloniais uma contribuição potente e singular.
Solange O. Farkas, agosto de 2021
Solange Oliveira Farkas (Bahia/Brasil) é curadora e diretora da Associação Cultural Videobrasil. Fundadora e diretora artística da Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil em 1983 e foi diretora e curadora-chefe do Museu de Arte Moderna da Bahia entre 2007 e 2010. Participou, como curadora convidada, da 10ª Bienal de Charjah (Emirados Árabes Unidos, 2011), 16ª Bienal de Cerveira (Portugal, 2011), 5ª Videozone – International Video Art Biennial (Israel, 2010), FUSO – Mostra Anual de Videoarte (Portugal, 2011-2014 e 2017), 6º Festival Internacional de Vídeo de Jacarta (Indonésia, 2013) e Dak’Art – Biennial of Contemporary African Art (Senegal, 2016). Em 2019 foi co-curadora da exposição “Dear Amazon, Brazil X Corea The Anthropocene 2019” no Ilmin Museum of Art (Seul,Coreia do Sul). Farkas integrou também o júri da 10éme Rencontres de Bamako – Bienal Africana de Fotografia (Mali, 2015). É membro do comitê de jurados do EYE Art & Film Prize de Amsterdã, integra o Comitê de Premiação do Prince Claus Fund Award (2017-2018) e o conselho consultivo do espaço de arte Pivô, em São Paulo além de fazer arte do board do IBA (International Biennial Association). Em 2017, foi contemplada com o Montblanc Arts Patronage Award, prêmio da fundação alemã destinado a profissionais com trajetória de destaque no apoio ao desenvolvimento das diversas expressões artísticas e culturais.