A simpatia é uma forma de ação, uma intenção depositada sobre a vida. Sua prática é a materialização cotidiana da magia/crença popular, transmitida verbalmente de geração em geração. Pouco se sabe de sua origem, quem inicialmente começou a propagá-la, mas a força disseminativa é poderosa, em qualquer canto do Brasil há sempre uma avó que aconselha a filha, sobrinha ou vizinha com um ato espiritual que vai pavimentar o caminho da realização de sonhos, na atração de positividade e prosperidade, na resolução de algum problema grave ou até mesmo uma cura a ser atingida.
Esse trabalho suntuoso da fé é aliado à esperança da força feminina, de sustentar a energia da família, em suas muitas possibilidades. Essa força da mulher é motriz na poética de Larissa de Souza, que as elege como suas personagens principais, singulares, melancólicas e profundamente poderosas.
Na mostra individual “Fé Feitiço”, Larissa de Souza nos absorve na conversão visual que tece destinos e evoca ancestralidades de muitos Brasis. A artista circula a temática de aprendizados e crenças, transmitidos por seus familiares e que de alguma maneira, previamente à feitura da exposição, já permeavam seu imaginário. A pesquisa se consolidou ao deparar-se com a percepção da proximidade cultural com Angola, o que fascinava a artista virou matéria após um período que passou no país irmão - se deparou com uma familiaridade local, hábitos e costumes angolanos que eram tipicamente brasileiros.
Povos são organizados pela memória e a oralidade é a manifestação desta, pois é na memória que a colonialidade falha, a reexistência opera e as histórias perseveram. A coincidência de crenças entre Angola e Brasil é o reflexo da afro-diáspora, em como há um cruzamento entre os mitos populares e como somos forjados na ancestralidade advinda da África. Sábia é a nação que acredita e valoriza a ancestralidade, pois é nas fissuras da cultura que descobrimos a sobrevivência da memória. É apesar de e sobretudo na violência que a fé encontra maneira de se manter a esperança, é um modo de invocar uma ordem metafísica, uma forma de viver.
A produção pictórica da artista converge com o entendimento de saberes ancestrais e culturais, silenciados pelas colonialidades, mas que resistem e habitam o inconsciente coletivo. Ao revisitar essas crenças populares, busca uma reconexão com identidades culturais do passado e ao fazê-lo, ressignifica o presente.
De Angola trouxe tratamentos medicinais, feitiços, chás e pedras, cada qual com sua função, aprendidas em trocas cotidianas e conversas em feiras. Há uma vivência que só se realiza na troca pessoal, de ouvir histórias, de estar presente nessas imbricadas sociabilidades. Um desses encontros é traduzido em pintura, o Gipalo, a doença da traição. Quando um bebê está com seu corpo vulnerável adoece após a traição paterna, ao receber energias externas. A solução parte das benzedeiras, a cura é consumir e se banhar em pele e fezes de elefante. Notem que a medicina das curandeiras por si só constitui um sistema de conhecimento, o que Larissa faz é traduzir em composição de pintura, contemplando vários universos narrativos em um retângulo só, com destaque para pequenas pinturas no topo do contexto maior que contam a história de amor e posterior traição.
A fé é a magia, aterra o conhecimento ancestral que circula na oralidade, de saberes que não são mapeados, presentes nas curandeiras, nas feiras, nas casas, nas conversas - o misticismo é palpável ao mergulharmos no espaço expositivo. As pinturas cristalizam na produção pictórica o conhecimento da oralidade, estabelecendo um processo de subjetivação, a artista maneja fundir de maneira lúdica o Brasil e Angola contemporâneos.
A pintura surreal é o leite dos sonhos e os trabalhos nos dão um vislumbre de um mundo mágico, a vida a partir do prisma imaginativo, em que corpos podem ser transformados, ser o que são. Elabora um encontro radical entre realidade e fabulação, sua perspectiva é repleta de simbolismo e alusões imagéticas, como percebemos na pintura do bebê pé de bananeira, uma conexão entre terra, crença e imaginação. A artista é atravessada pela espiritualidade do inconsciente, evocando a libertação do gesto, dos limites da pintura, das mulheres, dos corpos e do preconceito.
O fantástico é tangível, Souza adiciona camadas de texturas em suas pinturas, como ao adicionar pérola de mica em pó, um minério cintilante, que projeta uma resplandecência da pintura. Há também a associação com tecidos que são colecionados pela artista, advindos de brechós, tramas repletas de histórias e energias. Consolida a fatura matérica da pintura com essas aplicações aliada a imagens do seu inconsciente, realizando um universo absolutamente encantador aos olhos dos visitantes. A paleta de cores em “Fé Feitiço” explora tons azulados com nuances violáceas, com adição de bordados, ladrilhos e pedras. Transita entre o lilás sutil e o púrpura denso, tons que aprofundam uma sensação de elevação espiritual.
O protagonismo das mulheres está atrelado à esperança e à vontade de resolução, no entanto, há certa melancolia no olhar de suas figuras. Se percebe que a simpatia reflete o trabalho descomunal e silencioso da alteração das condições de vida, da força apesar da dureza da realidade, mas que é vista a partir da morada lúdica. O corpo de trabalho na exposição reverbera sutilezas do interior da artista, como suas memórias infantis de alimentar a fé, como quando ao encontrar uma pedra bonita a transformava em amuleto de sua proteção.
Esse processo de ressignificação é um modo de reexistência, as cores irrompem nas pinturas, os símbolos compõem suas narrativas, envolvendo pensamento, percepção, sentimento e ação. Mignolo afirma que o caminho da reexistência é diverso de resistir, haja vista que resistir é permanecer preso às regras do jogo de outros, reexistir é concretamente o que percebemos na exposição, uma desvinculação para forjar algo singular e potente, uma conversão visual da vida.
A canção de 1997 “Las caras lindas”, interpretada pela cantora peruana Susana Baca, entoa “Las caras lindas de mi gente negra son un desfile de melaza en flor que cuando pasan frente a mi se alegra de su negrura todo el corazón”. A música afro-caribenha de Ismael Rivera exalta a ancestralidade e as raízes ao associar doçura e resistência como melaço em flor. Essa força está presente na poética de Larissa de Souza, sua construção imagética é tão potente que ficamos inebriados por essa energia que é projetada das telas, os tons e texturas intensificam as narrativas tão singulares de cada um dos trabalhos. Sob a velatura das necessidades da vida e da melancolia do desamparo, Larissa de Souza demonstra uma produção genuína e vibrante, uma arte feiticeira.
Mariane Beline