Matéria da Paisagem

 

Minas¹ não é palavra montanhosa

Manfredo de Souzanetto nasceu em Jacinto, nas proximidades do Rio Jequitinhonha, nordeste de Minas Gerais, estado montanhoso onde também originou-se sua prática. Desde então, sua obra lida com a visualidade e com a própria matéria das paisagens mineiras, tendo o próprio artista, no final dos anos 1970 (quando já começara a experimentar geometrias de forma mais enfática em suas investigações) reiterado a importância do lugar em sua obra. Mesmo quando as composições abdicam da figuração em prol de uma lógica aparentemente cartesiana, o segredo que mina do trabalho de Souzanetto ainda é, em suas palavras, "a paisagem, a das montanhas de Minas Gerais, do qual ele nasceu."

Muda-se para Belo Horizonte em 1967, onde estuda desenho e pintura na Escola Guignard e arquitetura na Universidade Federal de Minas Gerais. É neste período que persegue o gosto pelo desenho e pelos pincéis, a este ponto já longamente cultivado. Esta primeira década de sua produção é marcada pela forte visualidade das paisagens mineiras e o aproveitamento de cores voluptuosas. Trata-se de composições onde a paisagem é atomicamente ordenada junto de outros elementos que anunciam seus interesses geométricos, logo aprofundados. Uma série de obras do período lhe rendem o prêmio do 5° Salão Nacional de Arte Universitária de Belo Horizonte, que proporciona a mudança do artista para Paris em 1975. 

Uma vez em Paris e afastado da sinuosidade das montanhas mineiras, narra com estima a temporada que lhe proporcionou proximidade aos grandes museus parisienses, suas amplas coleções e acervos. Não coincidentemente, se acerca das investigações conduzidas pelas vanguardas europeias, em especial as geométricas, como o suprematismo russo e o grupo francês Supports/Surfaces. O encontro com a lógica sistemática destas composições abstratas é refletido na prática de Souzanetto, e emergem composições menos figurativas onde a paisagem é progressivamente erodida, desvelando seus núcleos geométricos.

Posteriormente cristalizado como um período fortemente transformativo de sua obra, as pinturas reunidas nesta exposição parecem nos oferecer o ápice destas investigações: vemos quadrados em cores como o amarelo, o vermelho, o marrom e o cinza e a sinuosidade das paisagens aqui já não resta. Os quatro vértices se espraiam em zonas tonais ligeiramente esvaziadas pela gestualidade na aplicação da tinta, e convivem com áreas do suporte perfeitamente delineadas onde não há inscrição alguma, apenas tecido cru. Essa convivência dá a estas obras uma qualidade inefável que se ancora, paradoxalmente, em uma geometria sutil e robusta.

No entanto, é interessante notar essas pinturas também à luz da posterior paleta de pigmentos naturais estabelecida pelo artista, verificada nas demais obras que compõem esta mostra. Nesta vizinhança, vale afirmar que as acrílicas empregadas na década de 1970 se referem às colorações terrosas estabelecidas em sua produção posterior. E é impressionante notar a unidade tonal do conjunto, ainda que suas peças sejam separadas por décadas de produção. Indo mais longe, a atenção a essa similaridade pode nos oferecer um vislumbre extra, em que a escolha destes tons é também inclusão de um dado da paisagem, mesmo que na mais suprema das geometrias. Afinal, as tintas acrílicas parecem buscar os tons que Souzanetto alcançaria posteriormente em suas geometrias de terra, de terra de Minas.

 

É palavra abissal

De volta ao Brasil, a produção de Souzanetto na posterior década é enfática em suas inclinações geométricas, afastando-se decididamente do preâmbulo figurativo de sua prática. Fundadas a partir de uma aproximação cartesiana do suporte pictórico – característica que, no fundo, já compartilham com as obras desenvolvidas anterioremente em Paris – estes trabalhos da década de 1980 se diferem, no entanto, por sua materialidade constituinte: os pigmentos de terra. E não apenas terra, mas "terra de Minas", como expressa o artista, "terra onde existe minério". A geografia destes pigmentos não é acaso, explica, já que a presença destes diferentes minérios, proporcionada por um longo processo geológico, confere às terras suas distintas pigmentações.

Então estabelecido em um ateliê no Rio de Janeiro, retorna sistematicamente à Minas para a coleta dos pigmentos naturais que emprega na confecção de suas obras, procedimento constante até hoje. A experimentação enfática que vemos desabrochar nos chassis deste período surge como uma solução frente ao desejo de aumento das obras, já que fragmentando a superfície pictórica ela poderia ser posteriormente agrupada e por isso, maior. Contudo, o que surge como uma solução pragmática se mostra um procedimento extremamente profícuo no trabalho do artista, a ponto da palavra "chassi" não parecer mais suficiente na descrição de seu desempenho. Afinal, nestes trabalhos tal elemento já não é mais mero suporte, torna-se procedimento de desenho, traço constituinte da composição que é astutamente refletido e alargado nas superfícies da pintura.

Nos trabalhos das décadas de 1980 e 1990 aqui reunidos, tais áreas de pintura – cuja força é exacerbada pelos precisos recortes que revelam sua superficialidade – nos oferecem geometrias que se fazem com a terra. O artista bem sabe explorar a paleta de cores restrita aos pigmentos postos pelos minérios, e a tonalidade dos vermelhos, verdes, amarelos e cinzas que populam os trabalhos carregam uma qualidade geológica. A disputa entre os limites da pintura e seu suporte torna-se constante na obra de Souzanetto, ainda que, já nos anos 2010, alguns dos desdobramentos aproximem-se decididamente à lógica horizontal tradicionalmente atribuída à paisagem. No mesmo período surgem as "velaturas de Tabatinga", como nomeia o artista, terra alva cuja origem revela-se em sua expressão deste pigmento que lhe proporciona zonas tonais brancas, saturadas ou não.

Assim, ao longo destes 40 anos de produção vemos calcificada uma interação entre áreas pictóricas e as orientações e limites colocadas pelos chassis, que atuam como traços no desenho da composição. Eles são parte de um "pensamento estrutural que é refletido na pintura", revela Souzanetto, e não coincidentemente quando atentamos à profundidade e minúcia de tais interações. As composições que nos oferece – e seus contornos, limites e orientações inerentes – constituem-se, portanto, a partir dos chassis, cujas formas, por sua vez, "surgem à medida que são feitas". E, entretanto, para o preenchimento pictórico de tais suportes, o artista volta a buscar inspiração na "geometria da paisagem", nos revela, ou no recorte de um detalhe (como uma inclinação ou sobreposição) sugestivo que é nesta encontrado e esgarçado em suas investigações.

Assim, mais parece que na obra do artista a busca por uma identidade geométrica rememora o processo de dilapidação imposto sobre as sinuosas serras mineiras. Sua prática propulsiona investigações em que a paisagem é progressivamente diluída em elementos geométricos, e, progressivamente, se esvai… a vemos calcinada até suas geometrias fundantes. E aqui só resta o adamantino, os traços estruturais de cada elemento, que já não cristalizam mais do que vagas sugestões a seus lugares de origem. Agora Minas é o que está dentro, fundo, enterrado pelas cada vez mais complexas e meticulosas investigações formais. É a matéria da própria pintura, a terra que a constitui, o profundo ali emplastado.

O segredo da contínua prática de Souzanetto se revela, ainda, na observação de que, mesmo quando esgarçada ao extremo de seu potencial geométrico e racional, o assunto de sua obra ainda é a paisagem e sua matéria, as serras de Minas e sua terra. Não à toa, este ensaio sobre a extensa prática de Manfredo toma seus subtítulos emprestados dos versos de Drummond pela identificação que observo entre tais palavras e a prática do artista – que, aliás, me parece ter compreendido o poema melhor do que nós todos: o que faz é escavar as capacidades "abissal", "dentro e fundo" a que o poeta se referia. Manfredo ao longo dos anos recorta, esculpe e dilapida os horizontes sinuosos à procura de seu dentro e fundo, sua geometria e matéria fundantes, numa prática que reverbera a atenção não só à visualidade da paisagem, mas também ao que a constitui.

Nas obras desta exposição, o artista estabelece uma relação profunda com a matéria da paisagem, e é encantador pensar numa geometria que se faz com a terra porque ao fundo advém, fundamentalmente, dessa mesma. Terra, elemento cardinal que é tão grande em seu potencial de significados, alguns tão antigos. Terra, que como bem diz Bachelard, é o que nos dá uma primeira referência "de acima e de baixo, de fora e de dentro, de dureza e solidez." Terra que aqui ensina o que é dentro e fundo ao converter-se em pintura.

 

Ana Clara Simões Lopes 

 

¹ Minas Gerais é um estado brasileiro localizado no sudeste do país. A topografia de Minas Gerais é muito acidentada, e alguns dos picos mais altos do país podem ser encontrados em seu território. O estado também abriga a nascente de alguns dos principais rios do Brasil.

12.2023, 2023

pigmentos naturais com resina acrílica sobre tela e madeira

242 x 140 cm

29.1994, 1994

pigmentos e resina acrílica sobre tela colada em madeira

181 x 74 cm

47.1984, 1984

pigmentos e resina acrílica sobre tela e madeira

185 x 107 cm

3.1985, 1985

pigmentos e resina acrílica sobre tela e madeira

126 x 121 cm

5.1985, 1985

pigmentos naturais com resina acrílica e madeira

147 x 155 cm

3.2017, 2017

pigmentos naturais com resina acrílica sobre tela

70 x 165 cm

11.2023, 2023

pigmentos naturais com resina acrílica sobre tela e madeira

71 x 218 cm

12.2016, 2016

pigmentos naturais com resina acrílica sobre tela

95 x 168 cm

6.2010, 2010

pigmentos naturais com resina acrílica e bastão à óleo sobre tela

140 x 160 cm

2.2013, 2013

pigmentos, resina acrílica e bastão à óleo sobre tela

120 x 200 cm

10.2023, 2023

pigmentos naturais com resina acrílica sobre tela e madeira

136 x 229 cm

Sem Título, 1978

tinta acrílica sobre tela de linho

150 x 50 cm

Sem Título, 1976

tinta acrílica sobre tela de linho

150 x 50 cm

3.2013, 2013

pigmentos com resina acrílica e bastão à óleo sobre tela

116 x 203 cm

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242 x 140 cm





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pigmentos e resina acrílica sobre tela colada em madeira
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pigmentos e resina acrílica sobre tela e madeira
185 x 107 cm





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pigmentos e resina acrílica sobre tela e madeira
126 x 121 cm





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pigmentos naturais com resina acrílica e madeira
147 x 155 cm





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pigmentos naturais com resina acrílica sobre tela
70 x 165 cm





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pigmentos naturais com resina acrílica sobre tela
95 x 168 cm





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pigmentos naturais com resina acrílica e bastão à óleo sobre tela
140 x 160 cm





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pigmentos, resina acrílica e bastão à óleo sobre tela
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pigmentos naturais com resina acrílica sobre tela e madeira
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tinta acrílica sobre tela de linho
150 x 50 cm





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Sem Título, 1976
tinta acrílica sobre tela de linho
150 x 50 cm





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pigmentos com resina acrílica e bastão à óleo sobre tela
116 x 203 cm





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