Vão livre para dançar 

 
A casa está vazia. Só restaram cortinas, pedaços de tecido, braços de cadeira, caminhos de mesa, passamanarias. O que restou está incompleto – não propriamente quebrado, mas faltando pedaços, deslocado ou exilado de sua utilidade. O amor, como nos confessou o poeta (1), “devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escova, tesouras de unha, canivetes”. Desafinado, o amor fez perder o fio de corte dos machados. A casa, agora vazia, segue, ainda, boa e livre para dançar. 

Mano Penalva nos instiga a observar a casa. Não a que se mantém íntegra, faustosa, mas a que, em certo jogo entre decadência e ruína, nos aponta ao desuso de certas manufaturas tradicionais que se tornaram baldias, mundanas, ordinárias e que, com o passar do tempo, ocupam o lugar da preciosidade. Para que tramar tiras de palha à mão, compondo os assentos das cadeiras, se a indústria pode nos fornecer a artesania à metro? Como um paradoxo, encontramos, ainda hoje, artesãos dessa tradição nas esquinas das grandes cidades. O modernismo europeu nos iludiu ao afirmar que a forma seguiria a função. Isso jamais se estabeleceu plenamente. Gostamos dos excessos, nos entregamos aos ornamentos. A voluta, o pontiagudo, o arabesco, a art nouveau guardam certa vontade de fazer da casa um continuum da natureza. O capitalismo, que segue cooptando a manufatura, nos prometeu a plena substituição dessas tramas artesanais pelo modular industrial. E a indústria, distante das ideologias socialistas, reproduziu as divisões de classe entre o mais caro (erudito) e o mais barato (popular). Contudo, foram ficando aos pedaços outros saberes e tradições advindos, muitas vezes, dos povos originários, quilombolas e, mesmo, da decadente monarquia. Tramar à mão está próximo ao corpo, ao gesto, ao pensamento imediato, ancestral. 
Em Cumeeira, Mano Penalva permanece atento ao que constituiu suas pesquisas e seus interesses. O mercado de pulgas, os mercados populares e, sobretudo, o comportamento sociocultural que dota de sentidos e afetos o que se encontra em desuso. O próprio termo “cumeeira” define interesses de épocas remotas, nas quais festas e rituais de inauguração das casas eram noticiados pela imprensa. O rito, de outros modos, ainda é feito ao se erigir a parte mais alta dos telhados. A festa da cumeeira, cantada internacionalmente por Tom Jobim, não é senão o churrasco da laje, o cozido, o mocotó, que muitas vezes acompanham a ação coletiva (os mutirões) e que caracterizam as autoconstruções (método de edificar casas com a ajuda da família, dos amigos, da vizinhança). De modo ampliado, também entregamos as cumeeiras a santos protetores e orixás. 
Na exposição, Penalva observa e compõe tramas, as mais variadas. Achas e varetas de madeira se empilham em construções, couros de tambores são costurados lado a lado, palhinhas são arrematadas por um tecido de crochê de juta. A casa prevalece ao ambiente externo, à própria rua e, nos detalhes, vai nos conduzindo aos sinais de um trabalho inútil. Na arte, a chamada “vontade construtiva” também se dedicou a pensar esses gestos – a junção de planos, o equilíbrio de matérias –, muito mais pautada pelos módulos industriais que regiam a ideia de progresso. O Brasil gerou, com isso, uma perigosa limpeza étnica em obras que, muitas vezes abstratas, abriram mão justamente das culturas populares de tradições negras, indígenas e caboclas que Mano Penalva reinstaura. Por outro lado, não seria propriamente a ideia de popular que estaria em jogo. Antes, pensemos que lugares conceituais vão mantendo os gestos do artista como um pensamento que invoca outras sensações, outros sentimentos. Em “Afinados”, dois machados de madeira quase coincidem, como no amor, na dualidade nem sempre correspondente a um tempo partilhado. “Quebra sol” e “Arrimo” já nos colocam diante da multicultural tradição dos muxarabis árabes, reelaborados pelos brises e cobogós da arquitetura moderna, mantidos por peneiras das tradições da cestaria indígena. Ali, o que pode parecer obstáculo se organiza de modo malemolente, se mexe, dança com o vento ou com a interação humana. Ainda assim, o exercício geométrico se mantém em franco diálogo com a história da escultura brasileira, com os aprendizados concretos e neoconcretos. 

Para além dos interesses pelos gestos populares, pelas manufaturas em desuso e pelos ornamentos da casa, vemos, em Cumeeira, um uso elaborado, quase literário, de metáforas visuais. Os couros redondos dos tambores são chamados de “Pérola”. A paisagem, por exemplo, se mostra como mote associativo quando um tecido azul com duas argolas pendentes ganha o título de “Chuva”. Um molde de palhinha em formato aproximado a um chapéu, acrescido de pingentes de cortina é nomeado: “Arlequim”. Aqui, o tom da poesia de Mano Penalva nos coloca em sensações de nostalgia e reminiscência, em um jogo conceitual romântico que convoca as memórias deixadas em pedaços nas casas vazias – memórias que ganham vitalidade ao enfrentarmos os vazios das mudanças. 

 

Marcelo Campos 

 

(1) Neto, João Cabral de Mello. Os três mal-amados. 1943. 

Pérolas, 2022

couro, argola de metal, barra de ferro e suporte de cortina

231 x 152 cm

Espalda I, 2018

palhinha, crochet de juta, linho e moldura de madeira

117 x 117 cm

Arlequim, 2022

palhinha, juta, pregos, miçangas de madeira, pingente, tecido blackout

126 x 156 x 5 cm

Afinados, 2018

madeira

36 x 8 x 3,5 cm

Espalda II, 2018

palhinha, crochet de juta, linho e moldura de madeira

117 x 77 cm

Arrimo I e II, 2023

miçangas de madeira, fitilho, ripa de madeira, suporte de ferro e cabo de aço

305 x 65 x 65 cm

Chuva, 2023

alças de madeira para cortina, linho e moldura

117 x 137 cm

Quebra Sol, 2022

miçangas de madeira, fitilho, ripa de madeira e suporte de ferro

304 x 370 x 26 cm

Palafita (Série Ventanas), 2023

nylon, ripa de madeira, tinta acrílica e chassi

42 x 42 x 6 cm

Sem título (Série Ventana), 2023

madeira, tinta esmalte, tinta acrílica, pasta metálica, prego e chassi

62 x 42 x 6 cm

Cumeeira I, 2022

ripinhas de madeira, tinta esmalte e base de madeira

177 x 42,5 x 42,5 cm

Cumeeira II, 2022

ripinhas de madeira, pasta metálica e base de madeira

191,5 x 42,5 cm

Mobília I, 2023

braço de cadeira, chassi, linho e moldura

162 x 82 x 54 cm

Mobília II, 2023

braço de cadeira, chassi, linho e moldura

162 x 88 x 62 cm

X
ID: 20
Pérolas, 2022
couro, argola de metal, barra de ferro e suporte de cortina
231 x 152 cm





X
ID: 21
Espalda I, 2018
palhinha, crochet de juta, linho e moldura de madeira
117 x 117 cm





X
ID: 22
Arlequim, 2022
palhinha, juta, pregos, miçangas de madeira, pingente, tecido blackout
126 x 156 x 5 cm





X
ID: 23
Afinados, 2018
madeira
36 x 8 x 3,5 cm





X
ID: 24
Espalda II, 2018
palhinha, crochet de juta, linho e moldura de madeira
117 x 77 cm





X
ID: 25
Arrimo I e II, 2023
miçangas de madeira, fitilho, ripa de madeira, suporte de ferro e cabo de aço
305 x 65 x 65 cm





X
ID: 26
Chuva, 2023
alças de madeira para cortina, linho e moldura
117 x 137 cm





X
ID: 27
Quebra Sol, 2022
miçangas de madeira, fitilho, ripa de madeira e suporte de ferro
304 x 370 x 26 cm





X
ID: 28
Palafita (Série Ventanas), 2023
nylon, ripa de madeira, tinta acrílica e chassi
42 x 42 x 6 cm





X
ID: 29
Sem título (Série Ventana), 2023
madeira, tinta esmalte, tinta acrílica, pasta metálica, prego e chassi
62 x 42 x 6 cm





X
ID: 30
Cumeeira I, 2022
ripinhas de madeira, tinta esmalte e base de madeira
177 x 42,5 x 42,5 cm





X
ID: 31
Cumeeira II, 2022
ripinhas de madeira, pasta metálica e base de madeira
191,5 x 42,5 cm





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ID: 32
Mobília I, 2023
braço de cadeira, chassi, linho e moldura
162 x 82 x 54 cm





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ID: 33
Mobília II, 2023
braço de cadeira, chassi, linho e moldura
162 x 88 x 62 cm





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