MATÉRIA EM DESVIO
O diálogo proposto entre as obras dos acervos da Simões de Assis Galeria de Arte e SIM Galeria é pautado pela ideia de desvio. Em particular, o desvio do uso de determinados materiais clássicos do campo da Arte para o desenvolvimento dos trabalhos aqui reunidos. As vozes presentes subvertem a noção do fazer artístico a partir do deslocamento de elementos e aparatos de outros domínios para dentro de suas poéticas artísticas.
Ao citar os materiais clássicos do universo da Arte, contempla-se, em linhas gerais, as técnicas mais comuns dentro de duas disciplinas artísticas tradicionais. A saber, a pintura sobre tela ou papel com óleo, acrílica, aquarela ou guache; e a escultura a partir da pedra, metal, argila ou madeira. Diversos entre si, os artistas investem nos meios pictórico e espacial, munidos de um vasto repertório formal e matérico. São múltiplas as premissas para a eleição dos materiais que regem cada obra. Tomando como primeiro exemplo a grande figura de Geraldo de Barros (Chavantes, SP, 1923-1988) que, em fase tardia de sua produção, se vale de montagens sobre laminado de plástico e fórmica – como H7 (1985) –, justificado pelo potencial reprodutivo que tais materiais industriais provêm à arte concreta.
A tecnologia da fórmica também estabelece a potência e limites de Defórmica 50 (2011), da curitibana Eliane Prolik (Curitiba, PR, 1960). As lâminas empregadas têm sua cor, espessura e resistência definidas pelo fabricante, permitindo que o gesto humano seja identificado somente na definição da disposição da obra na parede. Um ziguezague se define sobre o plano vertical e as lâminas evoluem ao passo que se encerram em si mesmas.
Os trabalhos se envolvem intimamente com o material sobre o qual acontecem e evocam processos que lhes são exteriores. É o caso de Sem título (2018), de José Bechara (Rio de Janeiro, RJ, 1957), em que processos químicos atuam sobre uma lona de caminhão que já cumprira sua função original. Este trabalho, entretanto, não é sobre a narrativa acumulada por esta superfície, não trata de um tema específico. A abstração da obra do artista carioca eleva a discussão da temporalidade ao recusar-se partir de uma tela em branco, um zero absoluto, um terreno aplainado.
André Azevedo (Curitiba, PR, 1977), por sua vez, opera sobre fitas de máquina de escrever em Consoante II (2020). Ao posicionar a tira no equipamento, o artista bate aleatoriamente sobre folhas de carbono, registrando as letras sobre a própria fita com o pigmento da lâmina. Um grid se levanta no espaço e é possível remete-lo à estrutura visual de um texto: apesar da ausência de conteúdo, linhas tecem um ritmo diante do espectador.
Ao lado da instalação de Azevedo, um horizonte se apresenta a partir de dezoito paisagens imaginadas por Rodrigo Torres (Rio de Janeiro, RJ, 1981). Os trabalhos da série Mundinho (2018/2019) supõem ecossistemas surrealistas a partir da justaposição de recortes de cédulas monetárias. Tendo o dinheiro como matéria dos objetos artísticos, as obras tensionam a distinção entre preço e valor em diversos planos e, inevitavelmente, a inserção destes conceitos no circuito da arte.
No centro do espaço expositivo encontra-se Sem título (1988), de Luiz Schwanke (Joinville, SC, 1951-1992). Línguas, narizes e falos estampam páginas de jornais que noticiam a possível contração da Indústria nacional e as ameaças à Constituição de 1988. A forma de tons quentes se repete de modo imperfeito oito vezes sobre o veículo de massa que se repete a cada dia, um pouco diferente, um pouco semelhante.
Há, contudo, três exceções ao recorte apresentado pela mostra. As obras de Frank Ammerlaan (Amsterdã, Holanda, 1979), Juan Parada (Curitiba, PR, 1979) e Julia Kater (Paris, França, 1980) de materiais tradicionais como o chumbo, a cerâmica e a tinta óleo sobre papel, respectivamente. Entretanto, os artistas – cada um a seu modo – deslocam a aplicação destes elementos para suportes que são, a princípio, estrangeiros. Por um lado, em Sem título (2019), de Ammerlaan, uma placa de chumbo com vincos cobre um chassi típico de telas de pintura. Parada, por outro, explora em Estratificação Geométrica (2019) o plano pictórico sugerindo desenhos com peças de cerâmica – matéria longeva na disciplina da escultura, assim como o metal de Ammerlaan – no espaço bidimensional. Por fim, Kater deposita a tinta óleo sobre o papel nas quatro obras da série Carbono (2018) para transferir ao suporte artístico o registro de operações desenvolvidas com crianças. Cada obra é resultado da sobreposição de desenhos de uma garota ou um garoto, elaborados em diferentes etapas do trabalho pedagógico e motor com a artista.
Desviantes, mas não errantes, as obras exibidas pelas Galerias têm suas matérias e apartos de escolha não simplesmente como veículo para a ação, mas como eixo de discussão dentro do universo de cada trabalho.