O trabalho de Julia Kater expõe uma variedade de situações cotidianas íntimas, todas vividas e percebidas como intrigas pessoais e universais. Julia Kater apreende seu próprio cotidiano. Ela o fotografa como ponto de partida de uma narrativa na qual, através do jogo de recuos sucessivos e de associações de formas, recompõe conjuntos a serem elucidados, como em La Roche [A Rocha] (2018), apresentada por ocasião de sua exposição individual em 2018 na Galeria SIM, em São Paulo.
Os gestos que se revelam na obra sugerem uma ação passada ou futura. A repetição do ser. A repetição de si. Pelo tempo. Pela ação dos outros. Ao contrário de uma abordagem onisciente, o trabalho de Julia Kater reúne detalhes, pedaços e partes de coisas e pessoas. A artista invoca a sociologia, a psicanálise e a filosofia a fim de redefinir os contornos de um ser contemporâneo e transitório, habitado por seus traumas, lembranças e desejos contraditórios.
Quer seja uma ação específica ou a evocação de uma lembrança, essa fragmentação de coisas e pessoas traça uma narrativa episódica e lacunar do ser. Aquilo que é retido está bem distante do momento da captura da imagem e da identificação das situações, de modo a revelar a universalidade da cena. Uma refeição, uma tarde na praia, um encontro, uma conversa. Os rostos ocultos por outra imagem, por outros corpos, possuem contornos, vibrações. Mas o olhar, a tensão, o desejo são todos potenciais, eventuais ou ocultos. A representação é alterada pela própria colagem e/ou edição. Os corpos das pessoas fotografadas por Julia Kater não são representados na sua totalidade. Pelo contrário, eles aparecem por sugestão, evocação, premonição. Como uma intuição do ser que é, do ser que vem a si.
O desejo não é diretamente compreensível. O que diz essa mão? O que quer essa cabeça? Como interpretar o olhar em um rosto ausente? Para Julia Kater, a projeção de si no mundo ocorre através da identificação do desejo do outro, na apreensão da vontade de quem nos cerca, fala conosco, se entrega, ama, promete, informa, contradiz.
Na última série, uma fotografia serve de cenário para uma cena. Mesa branca instalada temporariamente para uma refeição. Um almoço na grama. Em frente às escadas de uma casa de família. No campo. Outras fotografias – de pessoas, detalhes, objetos – são adicionadas à primeira por superposição. As janelas de papel cortadas nessas fotografias menores fazem aparecer ainda outras cenas. A memória, o desejo, a projeção são ficções. Tudo o que se acredita poder reconhecer ou compreender, representar ou descrever está, na realidade, ainda mais distante de nós. Todos pretendem se lembrar bem e creem retratar o passado com uma veracidade tenaz. Porém, o que pode restar de um presente do qual apreendemos apenas impressões vagas, lembranças transformadas por humores e sensações, e pela ambição de fazer com que aquilo que vivemos corresponda a uma ideia? Os meandros da memória se aproximam das variações do desejo. O ser se encontra entre essas duas dimensões. Ele está à procura da permanência do outro para esquecer sua condição transitória. Ele recusa a ausência de uma parte do outro. Ele rejeita o esquecimento. Ele se vincula.
Théo-Mario Coppola
Théo-Mario Coppola
Desde 2013, Théo-Mario Coppola trabalha como curador independente e escritor de artesa visuais em Paris, França, e no exterior a nível internacional. Através de sua pesquisa curatorial, ele desenvolveu o conceito de “comunidades afetivas”, referindo-se a experiências pragmáticas de utopia e levando novas formas de colaboração e iniciativas de grupo. Seus projetos e cargos ocupados mais recentes são: residência em pesquisa nos arquivos da Coleção Moraes-Barbosa (2019, São Paulo, Brasil), “HOTEL EUROPA”, uma série de exposições realizadas em diferentes cidades europeias (maio de 2017 em Vilnius, Lituânia, janeiro 2018 em Bruxelas, Bélgica e maio de 2019 em Tbilisi, Geórgia). De agosto de 2017 a novembro de 2018, Coppola foi diretor da CollezioneTaurisano, coleção internacional de arte contemporânea privada em Nápoles, Itália. De setembro de 2017 a dezembro de 2018, foi diretor artístico da Primo Piano & Intermezzo, em Paris, França.