Sem título também

Os trabalhos mais recentes de Paulo Pasta, boa parte deles desse ano, estão abertos à visitação na Simões de Assis até 12 de setembro. Vá visitá-los, mas não desprevenido. Logo na entrada, uma tela predominantemente vermelha e enorme, assemelhando um quasar impassível e majestoso, sugere não levarmos para dentro os ruídos de sempre. Os quadros expostos não estão muito interessados em nosso falatório habitual. São ruminantes que metabolizam forma e cor numa luz que assoma de todos os lados, num espetáculo lento, que convém não interromper.

De onde vem esse espanto? Há muito, a pintura é ocasião para redescobrir que nem tudo se presta a confirmar nossas certezas. Desde que, no renascimento, L. B. Alberti definiu o quadro como uma janela aberta para o mundo, limitando-o à função de reiterar, no plano bidimensional, nossas evidências visuais, não faltaram artistas para contrariá-lo. Grandes pintores do século XVI (Pontormo, Beccafumi e El Greco, por exemplo) apostaram no caráter pictórico da pintura, enfatizando que um quadro é um quadro, e não um tunel do tempo rumo à paixão de Cristo ou uma representação mais ou menos fidedigna de uma araucária ou de uma personagem pública qualquer.

O “abstracionismo” do século XX (um termo equívoco, como advertiu M. Schapiro) elevou esta liberdade do pintor diante do regime denotativo a seu mais alto grau. Expulsando de vez Platão da sala, o século XX rifou a ideia de que a pintura deveria ser a representação bem acabada de algo fora dela. Mesmo nos quadros em que se discernem objetos, eles comparecem dotados de uma função muito mais compositiva do que referencial. Ou você acha que J. Johnson ou A. Volpi estavam ocupados em imitar alvos e bandeirinhas? Como também atestam os carretéis de Iberê Camargo ou as cabeças de Antonio Maia, na pintura contemporânea os objetos do mundo exterior são incorporados ao quadro ao título de elementos formais como planos, volumes, cores e linhas, numa investigação que não quer imitar seja o que for. O quadro é o lugar de uma pesquisa, a ocasião para uma experiência particular, variando conforme as escolhas efetuadas pelo artista. 

Munidos dessas ressalvas, podemos então indagar pelo tipo de pesquisa e experiência configuradas na obra de Pasta. O silêncio a que suas telas nos convidam é de que ordem? Como a cor, que prevalece nos quadros, se articula com o resto, e de que modo essa articulação o singulariza diante de outros artistas que também fizeram da cor o núcleo de suas poéticas?

A comparação pode ajudar. A cor de Arcangelo Ianelli (1922-2009), por exemplo, brilha e vibra, a ponto de quase se desmaterializar. Para obter esse efeito, emprega às vezes uma única cor, variando-a conforme um gradiente de tons que responde por uma espacialidade na qual as partes da composição ignoram completamente a lei da gravidade dos corpos. Também ali onde Ianelli utiliza mais de uma cor, a sobreposição entre elas não evoca nenhuma arqueologia, nenhuma ciência voltada para descobrir como o peso do terreno oculta e conserva vestígios de civilizações passadas. Ao invés disso, o que se tem é uma espécie de panejamento sem corpo, o que faz da cor o invólucro de uma luz que se propaga livremente no ar.

Em contraste com isso, Pasta labora sobre a cor sem suprimir as prerrogativas da matéria. Seu cromatismo é essencialmente corporal. Ao destacar a massa e o volume das cores, retoma a lição de Giotto, cuja pintura, rompendo com o viés espiritualizado da arte gótica, submeteu as criaturas celestes à lei da gravitação universal. Ao fazê-lo, Giotto expôs um novo tipo de espiritualidade – não destituída de matéria, mas enraizada nela. Mais recentemente, G. Morandi lançou mão de procedimento similar, fazendo da natureza morta - a rigor, a representação mais prosaica da matéria - um meio de sacralizar o cotidiano.

Se vejo bem, é nessa linha, embora a seu modo, que também se move Pasta, e isso desde o início de sua trajetória. Em meados dos anos 80, a massa cromática era obtida através da textura, cuja densidade fazia as cores evocarem um gesto passado, sedimentado na tinta. Os quadros desse período inicial assemelham a fósseis, híbridos de objeto e vida, que reverberam algo que emudeceu e do qual só restaram o vermelho, o amarelo, o ocre, etc. A partir de mais ou menos 1994, esse procedimento é suplantado por outro, através do qual objetos como peões, ogivas, vigas e cruzes respondem, quer pela demarcação das diferentes zonas de cor, quer por intervalos que impedem que uma única cor exerça hegemonicamente seu fascínio sobre o olho.

A materialidade permanece central, mas o modo como as cores se distribuem e se arrumam no plano realça a ideia de que a composição é atravessada pela história. Há um rastro de gestos e memórias no caminho do olho, que a separação das zonas de cor pelas vigas, ogivas e cruzes torna manifesto.

Essa solução é aprofundada pouco depois, como se vê em quadros como “Arroz com arroz“ e “Agosto em setembro” (ambos de 2004) ou “San Marco” (2005) e “A noite do meu bem” (2006). Neles, o envigamento das cores leva adiante a recusa de transcender e abandonar, por meio da luminosidade cromática, o relevo (paradoxalmente sem fundo) do território. A coabitação de diferentes zonas de cor é acentuada, fazendo do quadro uma cartografia na qual comunidades de cor diferentes mais se confinam, do que se combinam.

Talvez nisto resida a principal diferença com Volpi, que, guiado por certo ideal de simplicidade, escolhia as cores e definia sua função compositiva tendo em vista a criação de uma atmosfera a um só tempo espontânea e acolhedora. Não que a pintura de Pasta assombre e desacolha; mas isso só não ocorre, porque o envigamento empregado na composição aterra nosso olhar e o atrela ao rés da imanência. Há menos utopia e mais memória, o que significa que nos deslocamos no interior de questões que concernem ao tempo presente, sem, contudo, tomar os atalhos de sua negação. Essa permanência no regime da temporalidade também esclarece por que, apesar de afinidades inegáveis, Pasta dista de M. Rothko (1903-1970). A valorização da história e do passado o afastou do emudecimento atemporal produzido por poéticas voltadas para o sublime, como é o caso do grande arstista norte-americano.

Na presente exposição, o vínculo entre cor e temporalidade é radicalizado, na medida em que, em alguns quadros, chega a dispensar recursos compositivos como vigas ou colunas. Tudo se passa como se a simples diferença entre as cores criasse os lugares cromáticos, respondendo, assim, pela ocupação do território visual. Aumenta-se, com isso, a impressão de não haver explicação real para a coabitação de elementos distintos. A não ser que compreendamos a racionalidade como algo intrínseco ao processo de formação das massas dispostas no quadro – o que retoma o vínculo entre a medida do olhar e a temporalidade das formas, em um espetáculo voltado para nos alertar que ninguém poderia prever as coexistências admitidas pela história, ninguém poderia sequer atrever-se a cogitá-las, antes que a pintura as tornasse visíveis. É interessante recordar que, ao definir a finalidade como legalidade do contingente, Kant pensava na arte e na história, uma vez que, em ambas, a existência do que é arbitrário desvela possuir algum sentido. A pintura de Pasta, na mesma direção, exibe como temporalidade e cor se combinam, fornecendo à contingência uma forma compreensível e significativa.

Nessa filogênese dos corpos que convivem no mesmo plano, mesmo nas telas que poderiam evocar algum suprematismo a cor escoa ou borra para fora de seu território próprio, enfatizando a existência de relações interfronteiriças na constituição de identidades bem discerníveis. É o que ocorre, para ficarmos num único exemplo, com “Intersecção laranja” (2017): o trabalho do tempo é manifesto na base do quadro, ali onde a cor avermelhada escoa para fora de sua região. Nos quadros que compõem a “série Serrote no 25”, as acomodações de que resultam as massas distintas são ainda mais explícitas; e até na interior de uma mesma cor, percebem-se pinceladas heterogêneas, ou seja, feitas em momentos distintos, como a previnir que a instituição das identidades - assim como a identidade das instituições, se se quiser levar a discussão para o lado da política - não pode apagar os vestígios de gente que compõem sua matriz formativa.

Há muitas lições a extrair desses quadros. A mais atual reside em advertir que a identidade que buscamos tanto hoje em dia não decorre de formas atemporais capazes de dispor de uma evidência eterna; ao contrário, ela sempre resulta de práticas que se corporificam em costumes, relações e hábitos. Sempre é possível mistificá-las, pô-las a perder ou sacralizá-las como verdades extramundanas. Se, porém, aceitarmos o risco de incorporá-las, será preciso observar o trabalho incessante que o tempo exerce sobre tudo. É isso o que se vê no interior dos quadros de Paulo Pasta, nas zonas de cor delimitadas pela história persistente e silenciosa dos nossos recuos, avanços e acomodamentos.

 

Vinicius de Figueiredo

 

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Sentir Pintura


Gostaria de usar a palavra italiana sente, do verbo sentire, para falar dessas pinturas de Paulo Pasta. Não só por tudo que ela significa; escuta, sente, presta atenção, percebe e conhece, também pela tonalidade sensual do italiano que essa pintura possui e pelo que ela diz em português: sentir, somente. Pois sentir com uma intensidade coesa me parece a proposta singular deste trabalho, única talvez na pintura brasileira atual. Não vejo como se fragmentar, não há como se dividir diante de suas telas sem trair a verdade que elas trazem. Dividir, então, não é sentir. Sentir é tudo ou nada. 

E a experiência dessa pintura está, creio, em aproximar o mais possível o sentir a totalidade, que é a luz indivisível. Ficamos entre uma difusão e uma infusão; diante do espaço que se amplia através do que vai ermanecendo. Só assim a superfície é válida na pintura. A tela, sinto, atua como um difusor/infusor da luz. Torna-se uma superfície de manação da luminosidade e a pintura busca manter a mesma temperatura cromática absorvida; infundir a mesma intensidade visual em todo o espaço. Não pode haver eventos bruscos, nada que lembre a velocidade excessivamente fragmentaria da vida contemporânea. Na amplidão da tela, a pintura se expande sem saltos ou rupturas; constrói-se sedimentando-se. Não há brusquidão de formas ou cores, ritmos marcados ou contrastes peremptórios, ações incisivas do Eu. Temos um espaço aparentemente sereno, um tempo clássico /moderno que invoca Rothko, Morandi, Volpi, Brice Marden. Aí, neste organizar quase imperceptível, essencialmente discreto, surge o mundo traduzido um momento de quietude e escuta, dado por impressionismo não do instante, mas do perene. Esta imersão total, de corpo inteiro, sugere uma homogeneidade absoluta do sentir com a coisa sentida. Realização de uma dificílima unidade luz/vida, aquela mesma que Volpi atingiu.


Na tela as coisas estão pousadas, como a luz pousa sobre uma superfície e toma corpo. O arquiteto Louis Kahn escreveu que a arquitetura surge, pela primeira vez, quando a luz do sol bate numa parede. Assim também certa pintura. Aquela que vem do muro. O muro tem uma história pictórica notável. Nele, mais do que se imprimem, as coisas se depositam. Mais do que ideal, é um espaço físico, tátil. O olho toca,  mais que vê. Sente, mais que olha. Vai se percebendo-sentindo-certas temperaturas nessas pinturas. Os valores cromáticos parecem diferenciar-se pela delicada maior ou menor quantidade de calor que são sutilezas próprias à sensualidade. E, penso, à tênue tensão erótica  que propriamente emana das telas. Porque a pintura aqui é um corpo, que se pode sentir, quase apalpar através do olhar. É o prazer  que o olho sente ao percorrer a tela; É o próprio sentir-se-plena sensualidade atemporal do desejo. Oposta à velocidade, uma espera lenta. Uma espécie de suspensão - “pátina do tempo escoado” (Manuel Bandeira), um decantar à espera de que as coisas cheguem ao que são: um sentimento temporalizado. Na amplidão, e imperturbabilidade, as tensões cessaram ou diminuíram, um tanto apaziguadas. A pintura atinge o máximo de intensidade em repouso. Tão mais sólida quanto se esvai. Tão mais intensa quanto mais se retrai. E nesse retraimento há uma exposição máxima. Uma cálida vibração, que vela e expõe a verdade despojada e bela.

Límpida, depurada, inequívoca, ancorada num saber pictórico pouco comum entre nós e ainda em construção, a pintura de Paulo Pasta parece prescindir da invenção. Ou melhor, alonga a invenção e a preserva num meticuloso fazer. A invenção é a forma da espiritualidade que torna o presente da vida respirável. Como tantos outros calados, Paulo Pasta é um lírico que aspira a uma grandiosidade inédita na pintura brasileira. 


Paulo Venancio Filho

Anunciação Vermelha

Óleo sobre tela

240 x 300 cm

Intersecção Laranja

Óleo sobre tela

240 x 300 cm

Santo Antônio

Óleo sobre tela

180 x 220 cm

Sem título

Óleo sobre tela

80 x 100 cm

Sem Título

Óleo sobre tela

80 x 100 cm

Sem Título

Óleo sobre tela

50 x 70 cm

Sem título

Óleo sobre tela

40 x 50 cm

Sem Título

Óleo sobre tela

50 x 70 cm

Sem Título

Óleo sobre tela

80 x 100 cm

Sem Título

Óleo sobre tela

180 x 220 cm

Barómetro

Óleo sobre tela

40 x 60 cm

Sem Título

Óleo sobre tela

50 x 70 cm

Fuga

Óleo sobre tela

80 x 100 cm

Para Figari

Óleo sobre tela

50 x 70 cm

Sem Título

Óleo sobre tela

50 x 70 cm

Sem título - série Serrote Nº 25

Óleo, grafite e fita sobre papel

33 x 48 cm

Sem título - série Serrote Nº 25

Óleo, grafite e fita sobre papel

33 x 48 cm

Sem título - série Serrote Nº 25

Óleo, grafite e fita sobre papel

33 x 48 cm

Variação 5b

Impressão digital sobre papel Canson Etching Rag 310g

109 x 149 cm

Variação 6c

Impressão digital sobre papel Canson Etching Rag 310g

161 x 141 cm

Variação 6b

Impressão digital sobre papel Canson Etching Rag 310g

161 x 141 cm

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