"O real não está no início nem no fim, ele se mostra pra gente é no meio da travessia..."
Guimarães Rosa
É na mais recente exposição de Sergio Lucena que nos enveredamos pelo caminho do deslumbramento, um percurso de imersão na cor e no encanto. A cor é um campo de conhecimento inesgotável, que perpassa o tempo. Seu estudo fascina e provoca pesquisadores há centenas de anos, sendo parte da construção simbólica perceptiva de cada sujeito, parte de um constructo cultural e social.
Em publicação de 1810, o escritor alemão Goethe concebeu a cor como uma existência para além da física, entre a ciência e a linguagem poética. Se Newton preocupou-se em estabelecer critérios dentro da física, Goethe expandiu o campo de investigação e buscou entender o fenômeno que abarca a percepção. A doutrina Goetheana é uma ideia, uma sensação, da natureza como vida e como existência. A cor não tem existência material - é, portanto, uma sensação que surge devido à existência da luz.
Se, de um lado, Newton realizou a matematização da natureza no campo da ciência e, de outro, Goethe desenvolveu um estudo filosófico e sensorial, Sergio Lucena, artista, opera a materialização pictórica da cor.
O artista paraibano desenvolveu ao longo de décadas a captação da sensação da cor em suas paisagens, envolvendo aqueles que observam seu trabalho de maneira atenta. É no contato da tinta a óleo com o linho, tela ou alumínio que se cria a contemplação como dimensão afetiva da cor. Sua produção é formada pelo ato pictórico aliado ao simbólico, quase como um gesto religioso proposto pelo artista.
Em um mundo hoje desencantado, principalmente pelo isolamento digital tecnológico, parece não existir mais o mistério ou o desconhecido, tudo é imediatamente disponível, acessível e conectado. Pode parecer que estamos afundados em uma era da indiferença. Ailton Krenak, liderança ambientalista indígena, propõe estratégias para adiar esse fim trágico que se apresenta ao nosso mundo, lembrando-nos da necessidade absoluta de vínculos profundos com a memória ancestral - o meio para evitar a loucura em um ambiente que cada vez mais nos separa e cria ausências partilhadas.
Se estamos embrenhados nesse contexto pouco esperançoso, é a arte que parece ser o alento que nos resgata da apatia e da falta. Com a pintura, Sergio Lucena suspende o espectador e o mergulha em um mar de cores, fazendo com que o tempo se torne outro. Se pensarmos na origem etimológica da palavra encantar, do latim incantare, seria algo inebriante que causa o completo enfeitiçamento dos sujeitos. Suas paisagens nos enfeitiçam, constituem simultaneamente uma memória da tenra infância do artista com o estabelecimento de um mundo imaginado.
Em “A little larger than the entire Universe” (2023) vemos formações montanhosas que firmam o horizonte enquanto o roxo penetrante, em suas muitas variações tonais, abre-se para a infinitude do céu, dançando o olhar do espectador, convidando para uma sublimação pelos matizes. Seus trabalhos são uma maneira de nos fundir ao organismo que é a terra, e a pintura é seu aterramento, alcançando uma simbiose entre a paisagem inventada e uma relembrança de um nordeste celestial, ancião, com cores que apenas ele é capaz de criar. Com uma técnica de sedimentação de tinta singular, o artista desenvolve pelas camadas uma vibração crescente dos tons, quase como se estivessem em movimento, como se percebe na série “Threshold”.
É na submersão em cores magnéticas e arrebatadoras que atingimos a contemplação, um hiato em tempos de tamanha sobrecarga de informação e comunicação. Assim, assimilamos o silêncio. Se, para alguns, sonhar é abdicar da realidade, para outros, não há sentido na vida se não for pelos sonhos, qual seria a busca do encantamento. Lucena nos propõe um caminho do incantare, da imersão em seu universo brilhantemente construído, agindo no re-encantamento como condição sine qua non para ressignificar o mundo, em que a experiência da pintura é a travessia. Procede com destreza em meio a esses tempos de descolamento, proporcionando a contemplação, o silêncio, e realiza, mais uma vez, a materialização do sublime diante de nossos olhos.
Mariane Beline