E Pur Si Muove!
"A gênese de uma obra é de caráter cósmico.
O criador da obra é portanto o espírito.
A obra existe abstratamente antes de sua materialização,
o que a torna acessível aos sentidos humanos” .
Wassily Kandinsky (Conferência de Colônia, 1914)
É sabido que a obra de Gonçalo Ivo exige um tempo para ser apreendida, um tempo para interagir. Tempo para desvendar e escutar. Exige o trabalho da retina, e sempre nos reserva algo para o olhar. Confrontar sua obra é saber que uma mesma superfície não se enxerga igualmente duas vezes. Sua poética, como bem testemunhou Frederico de Moraes, “busca o equilíbrio entre os contrários” e “a unidade dentro da diversidade”. Intuição e lógica sempre coexistiram. Ele assume a plena autonomia da pintura como linguagem e a pincelada como a legítima caligrafia de um pintor. Suas obras retratam não apenas o desejo e o cotidiano. Vão mais longe. Dialoga com o passado, as ancestralidades e as múltiplas formas da produção cultural, longe dos limites geográficos. Respeita a modernidade, mas com independência redefiniu há tempos sua práxis, sem veleidades ou preconceitos. Pinta com liberdade. A notória habilidade técnica, desde a elaboração das próprias tintas, têmperas e suportes, até o manuseio de matéria orgânica, pregos, calcário ou elementos calcinados, permite Gonçalo ir muito além de regras ou convenções. A destreza nunca o impediu de transitar entre a monumentalidade e o detalhe, a espiritualidade e o corpo. Da mesma forma que experimentamos uma sensação monástica em suas delicadas aquarelas/iluminuras, sentimos na “majestade” dos grandes formatos, o que Marcelin Pleynet, no livro Oratório, definiu como a construção de uma catedral ainda que “ sem saber de que culto se trata”.
Exímio colorista, Gonçalo lança mão da cor como elemento definidor de sua obra. É com ela que reconfigura e cria espaços. Com enorme carga de pulsão, produz com cor e pela cor. Alterna planaridades e volumes, não respeitando as bordas da tela; quer extrair o máximo de uma expressão cromática particular. É seu diálogo e sua voz no mundo. A cor em Gonçalo desorienta. Ela invoca texturas, é tátil, repleta de odores; saturada, ela hipnotiza. Como em uma partitura musical, alterna ritmos e silêncios. São as partituras da cor e de cor.
Na atual exposição Gonçalo amplia seu repertório. Suas Cosmogonias revelam mais do que um corpo de doutrinas ou princípios helênicos do surgimento do universo. Não é a tradução de mitos da criação, mas obras que falam de movimento, e que se movimentam. Sem alusão à uma racionalidade estrita ou à métricas definidas, suas órbitas de cor nos remetem a ciclos perpétuos, mas que não definem necessariamente velocidades ou giros direcionais. Se para Duchamp o movimento de seus Rotoreliefs de 1935 careciam de estrutura mecânica na origem de seu cinetismo, ou percepções ópticas de volume, Gonçalo trabalha exclusivamente pela cor.
Com o recurso de colagens, têmperas, óleo, juta, folhas de ouro, cobre e prata, constrói, imerso em seu léxico, novas dimensões espaciais, sendo tarefa do expectador internalizá-las. Essa noção de movimento na arte moderna, tão cara aos futuristas, ganhou outra codificação nas mãos de Frantisek Kupka, Robert e Sonia Delaunay. Em suas obras seminais, Premier Disque de 1912 e Prismes Eléctriques de 1914, respectivamente de Robert e Sonia, os artistas romperam com a tradição. Para eles, ainda que inicialmente enraizados no cubismo, a pintura se destaca como uma união de sensações com cores puras, autônomas, e que se ativam diante da emoção do observador.
O poeta Guillaume Apollinaire em seu artigo “Les Peintres Cubistes, Meditations Esthétiques” (1913), ressalta que “a arte de pintar novas totalidades” não necessariamente se realiza a partir de elementos que o artista absorve de sua realidade visual. Na verdade ele cria inteiramente por si próprio, transmitindo “um prazer estético despreocupado, mas ao mesmo tempo uma estrutura significativa e um significado sublime”. Mas é a partir de obras como “Rythmes sans fin” de 1934 que se expressam mais incisivamente as ideias de um certo movimento, numa justaposição de cores complementares, e opostas, revelando a intensidade das mesmas, distinto de quando observadas isoladamente. Como poucos, Gonçalo articula e domina essa percepção, vai mais longe e nos deixa refletir de forma independente. Nos remonta à “música das esferas”, sem a limitação pitagórica, repleta de uma certa harmonia divina, celestial, dinâmica e de caráter ético.
Nos seus Jogos de Contas de Vidro, entre as muitas transparências sedutoras das virtuosas aquarelas, o artista retoma sua indução ao movimento. De forma lúdica, entre elementos de maior ou menor intensidade, redefine “objetos de cor” que flutuam, mas que como um “jogo”, também contabilizam. A verticalidade e a disposição das contas nos remete ao objeto milenar do ábaco, instrumento universal que permitiu ao homem organizar, sistematizar e educar. Se pudéssemos tocar nas superfícies translúcidas dos papéis, e movê-las com os dedos, não apenas rearranjaríamos as contas de vidro em sua infinidade aleatória de cores, como criaríamos uma nova forma de “somar” sensações e construir ritmos diversos. Gonçalo nunca precisou traduzir seu pensamento estético através de um discurso científico e tampouco em narrativas arranjadas. Sua pintura, entre diapasões de cores, arquiteturas cromáticas e musicalidade refinada nos revela sempre surpresas. E dessa vez ela se move.
Luiz Chrysostomo de Oliveira Filho*
Araras, Rio de Janeiro, 10 de Abril de 2021
*Economista e Presidente do Conselho do Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR)