No constructo da história da visualidade, no entrelaçamento da tecnologia, percepção e sociedade, os dispositivos ópticos modernos influenciaram a visão e impactaram a contemporaneidade. Aparelhos como o caleidoscópio - que deriva das palavras belo, imagem, figura, olhar, observar -, revelam elementos da assimilação imagética humana. Este é composto por um tubo pequeno de cartão ou de metal com pequenos fragmentos de vidro colorido, que se ativam através do reflexo da luz em pequenos espelhos inclinados, culminando em uma série de combinações visuais variadas, gerando padrões de desenho.
A exposição de Thalita Hamaoui, “Auroras”, nos demonstra o devaneio do olhar, elaborando no espaço quase como a entrada em um caleidoscópio de padrões botânicos, carregados de brotamentos cromáticos substancialmente vívidos, da investigação da luminosidade sobre os pigmentos, com paisagens que circundam a suspensão do clarear da aurora até a luz solar refletida sobre a lua. O espaço expositivo é ocupado com texturas e uma apreciação vegetal que aflora de modo inigualável na poética desenvolvida pela artista.
O gênero da paisagem em muito se transformou ao longo da história da arte, costumeiramente associado a desenhos de observação e da busca pela representação da natureza, vem sendo resgatado e aclamado como pesquisa diante de sua feitura contemporânea, se expandindo enquanto produção plástica. Realizando uma breve digressão à história dos gêneros pictóricos (esforço árduo, haja vista a compactação de centenas de anos em poucas linhas), pontua-se como a historiografia da arte se demonstra como um reflexo político/social. Circulando o recorte da presença das artistas mulheres no sistema artístico, verifica-se uma exclusão sistemática, ocasionada pelas limitações ao acesso às academias e liceus de artes.
A falta de acesso às aulas de anatomia não as impediu de produzirem, mas recorreram a outros artifícios, como pintarem a si mesmas ou amigos e familiares. Em uma leitura mais prática, isso significou que as artistas se dedicaram menos aos gêneros mais consagrados e quiçá mais cobiçados, tais como a pintura histórica ou a pintura mitológica, devido a esta hierarquia. Eram, portanto, condensadas a cultivar outros gêneros considerados menores, como retratos, paisagens e as naturezas-mortas.
Evidentemente que os contextos sociais se transfiguraram com o passar dos séculos e a presença das mulheres artistas na contemporaneidade é devidamente marcante, e Hamaoui contribui para ressaltar a potência da paisagem no campo da arte. Recuando temporalmente, relembremos das naturezas-mortas da pintora holandesa Rachel Ruysch (1664 – 1750), que impressionam por suas representações sofisticadas e detalhadas da flora e da fauna. A artista produziu ativamente até seus oitenta anos e obteve pareamento com artistas homens de seu período, apesar de pouco inserida/reconhecida nos manuais e livros de história da arte posteriores.
Ruysch e Hamaoui, apartadas por uma lacuna temporal, refletem modos processuais diversos acerca da investigação temática análoga. Notem que a primeira se debruçou sobre a apuração botânica nas naturezas-mortas na era de ouro holandesa, e Hamaoui, alcança a natureza sob uma perspectiva absolutamente vívida e em movimento, suas paisagens são fabulosas, caleidoscópicas, arrebatadoras aos olhos de quem se depara com a composição de cores áureas, em contraponto com matizes taciturnas. Flores e folhagens surgem e ressurgem, atribuindo novos significados ao gênero da paisagem, intensamente dinâmica e enérgica, com cores e formas que se amalgamam em composições singulares e que ativam o sensorial, decantando um quase aroma terroso.
Blocos de cor tangenciam vazios em meio a biomas construídos completamente repletos de pigmentação, criando uma atmosfera inebriante que nos afunda em uma densidade visual, como percebido no trabalho “O Mergulho” (2023) que inaugura a exposição. Outro procedimento utilizado pela artista é o estabelecimento de padrões, camadas de tinta sincronicamente marcadas pelo bastão oleoso, formulando estampas absortas em uma trama repleta de texturas.
Manifesta uma capacidade de navegar em composições que variam entre o diminuto e a dimensão monumental, absolutamente tenazes. Notadamente, destaca-se no espaço expositivo o trabalho “Janela” (2024) pela experimentação com lápis de cor e bastão oleoso. Em formato diverso do retângulo ou quadrado típico da paisagem acadêmica, a obra se torna praticamente um portal, uma fenda no espaço, uma suspensão entre a realidade e um vislumbre de um universo espiritual, de um simbolismo ornamentado.
O que Hamaoui projeta em sua poética é a concepção de um universo botânico que evoca elementos reconhecíveis, mas que de seu modo, dobram a realidade, criando uma flora imaginária, tipicamente Hamaouiana, em que a percepção do olhar se torna ritmada. Com influências, contaminações e prolongações de um trabalho no outro, a artista trilha um percurso potente consolidando a paisagem em um delicado diálogo de elementos que incidem em aplicações cromáticas e infusões de luz, ressaltando o resplendor de tantas auroras - físicas e simbólicas -, que antes vieram e que ainda hão de vir.
Mariane Beline