Gaia: seu corpo, sua carne, seu sopro

No início, éramos todas e todos o mesmo ser vivo. Compartilhamos o mesmo corpo e a mesma experiência [...] Multiplicamos as formas e maneiras de existir. Mas ainda hoje somos a mesma vida. Há milhões de anos, essa vida transmite-se de corpo em corpo, de indivíduo em indivíduo, de espécie em espécie, de reino em reino.

Emanuele Coccia, Metamorfoses.

 

O que há de mais íntimo e incomunicável em nós pode também provir de outrem, são resquícios, dados de memória e matéria que perpetuam outras formas passadas de vida. Refletir sobre esse estado de constante mutabilidade não só nos permite ver quão intercambiantes e interrelacionais somos, como retira do ser humano sua pretensa condição de centralidade: há uma continuidade que conjuga indivíduos, espécies, contextos, paisagens, a ponto de interligar a ínfima parte ao todo, a vida e a morte.

Sob esse viés, é possível considerar também nossas implicações e conexões com os territórios que ocupamos. Essas metamorfoses constantes nos permitem compreender que somos parte constitutiva das paisagens que habitamos e construímos, não somente pela ação direta nesses lugares, mas pela transmissão de memórias ancestrais resgatadas. A ideia de pertencimento extrapola os limites geográficos para também produzir significados em dimensões subjetivas.

Thalita Hamaoui ancora-se nessas dimensões subjetivas para construir suas paisagens ficcionais. A artista extrapola os limites do cientificismo e do figurativismo, abdicando da observação ou da fidelidade de representação de espécies botânicas conhecidas e de lugares reais. Por meio de um processo de resgate memorial e imaginativo, dá vida a paisagens repletas de organicidade e de uma ânsia por novos limites e extensões.

A visita ao seu ateliê revela como lado a lado, cada tela parece, por contágio, transpor-se uma à outra, seja pela repetição de um gesto, de uma forma, seja pelo caráter evocativo de sua paleta. Cada fragmento escolhido pela artista assume uma configuração instável e fluida, como se pudesse transitar de um trabalho a outro, da pintura para a artista, de seu corpo para o observador. Suas paisagens são resultado de uma incessante metamorfose que a inclui – faz da própria artista, de sua memória e ancestralidade, partes constituintes desse universo.

Engana-se aquele que atribui a fluidez de alguns elementos um gesto fortuito, impensado, que tem como característica primordial vencer e preencher as grandes superfícies que Hamaoui escolhe.

Na realidade, a escala desses trabalhos, de cada gesto, é parte simbiótica de seu corpo em contato com a tela, num exercício constante de fusão e distanciamento, pulsão e análise, ritmo e respiro.

É nessa simbiose que a artista rompe com os convencionalismos do gênero, criando paisagens destituídas de horizonte, de um dado representacional e constitutivo que pudesse localizar o observador nesse emaranhado de espécies. As matas fabuladas de Hamaoui nos convidam a nos embrenharmos, nos fundirmos. São magnéticas. Em certa medida, trazem uma camada de sensualidade, de uma atmosfera úmida e cálida, e lidam com a ideia de friccionar materiais de naturezas distintas, como a tinta a óleo, o bastão e o lápis. Minuciosamente, Hamaoui também escolhe cada tecido que abrigará a pintura, atenta-se à especificidade das fibras de linho ou do algodão cru e o comportamento destes diante dos materiais que usualmente utiliza no processo pictórico.

A dimensão atemporal constitutiva dos trabalhos torna difícil discernir se essas matas atlânticas evocadas pela artista são resquícios de um estrato geológico, de camadas soterradas de vida que habitaram outrora e hoje ressurgem em suas paisagens, ou se são parte integrante de algo por vir. Esses estratos são espécies de lençóis de passado que acumulam-se em regiões da tela, como se pudéssemos extrair dessas camadas algo novo e vivaz.

As metamorfoses de Hamaoui são, em suma, formas fecundas que se espalham e extrapolam inclusive os limites do pictórico. Mesmo ausentes do campo representacional, nossos corpos aderem-se às suas paisagens, reconhecem intuitivamente grande parte da flora ali presente. Passam de uma existência a outra, de espécie a espécie, da célula à Gaia. Como uma polinização, basta um sopro para permitir que essas formas se conectem, dando vida, mais uma vez, à magia do inesperado.

Priscyla Gomes

Descobertas, 2022

óleo e bastão oleoso sobre algodão

32 x 42 cm (com moldura)

Bosque dos mistérios, 2023

óleo e bastão oleoso sobre tela

300 x 200

Hoiá Baciu (Floresta Baciu), 2023

óleo e bastão oleoso sobre tela

202 x 422 cm

Terrinha, 2023

óleo e bastão oleoso sobre tela

122 x 122 cm

Viva Jorge, 2023

óleo e bastão oleoso sobre tela

202 x 142 cm

Nuvem Rosa, 2023

óleo e bastão oleoso sobre linho

210 x 250 cm

Una, 2023

óleo e bastão oleoso sobre linho

210 x 250 cm

Leve e forte, 2023

óleo e bastão oleoso sobre tela

102 x 82 cm

O Salto II, 2023

óleo e bastão oleoso sobre algodão

160 x 142 cm

O Salto I, 2022

óleo e bastão oleoso sobre algodão

163 x 143 cm

Noite Preta, 2023

óleo e bastão oleoso sobre linho

230 x 200 cm

X
ID: 20
Descobertas, 2022
óleo e bastão oleoso sobre algodão
32 x 42 cm (com moldura)





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ID: 21
Bosque dos mistérios, 2023
óleo e bastão oleoso sobre tela
300 x 200





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ID: 22
Hoiá Baciu (Floresta Baciu), 2023
óleo e bastão oleoso sobre tela
202 x 422 cm





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ID: 23
Terrinha, 2023
óleo e bastão oleoso sobre tela
122 x 122 cm





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ID: 24
Viva Jorge, 2023
óleo e bastão oleoso sobre tela
202 x 142 cm





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ID: 25
Nuvem Rosa, 2023
óleo e bastão oleoso sobre linho
210 x 250 cm





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ID: 26
Una, 2023
óleo e bastão oleoso sobre linho
210 x 250 cm





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ID: 27
Leve e forte, 2023
óleo e bastão oleoso sobre tela
102 x 82 cm





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ID: 28
O Salto II, 2023
óleo e bastão oleoso sobre algodão
160 x 142 cm





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ID: 29
O Salto I, 2022
óleo e bastão oleoso sobre algodão
163 x 143 cm





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ID: 30
Noite Preta, 2023
óleo e bastão oleoso sobre linho
230 x 200 cm





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