AVESSO VIÉS
Vai além do acaso a profusão de alegorias, mitos e metáforas que entremeiam a tessitura e a percepção da passagem do tempo. A relação entre o trabalho da trama e urdidura com analogias para a contagem do tempo é intrínseca à própria história. As civilizações tiveram na criação da tecelagem um passo importante para o amadurecimento de seu entendimento da duração como articulação entre, de um lado, unidades constantes de tempo (a trama) e, do outro, os vetores descontínuos dos acontecimentos (a urdidura).
A força dessa ancestral relação simbólica entre tessitura e temporalidade é tal que segue vigente até hoje, após tantas transformações técnicas e tecnológicas. O que torna essa ideia mais complexa, porém, é a relação que a sociedade contemporânea tem com a própria noção de duração. Temos sérias questões com a passagem do tempo: ela angustia gerações viciadas pela gratificação instantânea (alcançada pelo consumo e pela aprovação social). A extensão do tempo tornou-se tão problemática que não pode sequer ser deixada de lado como uma preocupação secundária.
Artistas que lidam hoje com o têxtil em suas mais diversas possiblidades têm em mãos, portanto, uma matéria cuja substância, o tempo, é tanto fonte de fascínio quanto de estranhamento. Para esta exposição, foram escolhidos artistas que abarcam uma gama de materiais flexíveis, naturais ou sintéticos, e impõem sobre eles gestos de atualização abrupta de sua presença como objeto e como signo: cortar, manchar, torcer, desfiar, esgarçar, virar do avesso. Como descobriu Lúcio Fontana ao atacar a superfície de sua pintura, basta um rasgo para que a substância deixe de ser apenas suporte para então afirmar sua espessura, ainda que ínfima. Como qualquer costureiro ou costureira sabem, basta fazer um corte oblíquo na trama ortogonal de um tecido para interromper sua regularidade, produzindo uma peça de tecido chamada em português de “viés” – ou seja, uma mesma matéria resultante da extensão da tessitura pode ter suas propriedades a tal ponto transformadas por um simples corte diagonal que vale a pena renomeá-la. Basta, portanto, um gesto para que uma duração extensa se transforme em um instante presente. É isto que se experimenta, com delicadeza ou violência, humor ou obsessão, nas obras dos artistas contemporâneos aqui reunidos.
Como decorrência do sentido antropológico dos materiais empregados e da memória cultural dos gestos envolvidos em seu manuseio, despontam também associações aos usos do tecido em nossa vida cotidiana, especialmente aqueles que se empregam como segunda pele. Quanto mais a coreografia de cortes, dobras, costuras e afins converge para conformações de unidades coesas, mais ela compartilha critérios com as práticas de confecção de vestimentas. Quanto mais a legibilidade das cores, texturas e caimentos das substâncias assume seu caráter alusivo e afetivo, somado a eventuais marcas de uso, desgaste e contato com outros materiais, mais entram em cena as qualidades atávicas das memórias que associamos a roupas de cama, de casa e do corpo.
Na soma desses movimentos, Avesso Viés conforma-se, por fim, como um exemplo de que a hierarquia entre procedimentos associados a ofícios, ofícios historicamente imbuídos de maior ou menor prestígio, está sempre em renegociação. Nada impede que, a cada gesto, a prática ordinária de desfiar uma trama ou emendar dois pedaços de pano carregue-se de tocante intensidade concentrada no que há de mais ínfimo. Ou que, da intempestiva marca do corte, religado ou não pela linha do zíper, descortine-se a consciência do momento presente – com toda sua ansiedade e privação de garantia de duração futura.
Paulo Miyada
curador
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