Diálogos do Modernismo
A arte moderna surgiu na França em meados do século XIX, com artistas que buscavam cada vez mais uma linguagem singular, desafiando os preceitos tradicionais das Academias de Arte – que preconizavam padrões estéticos e temáticos –, e buscando mais liberdade para novas formas de pintar novos assuntos. Geralmente considera-se o impressionismo o princípio de toda uma série de movimentos artísticos e estéticos que se estenderam das últimas décadas do século XIX até o início do século XX, com a figura de Édouard Manet como seu pioneiro. Mas esse estopim foi apenas o primeiro momento de incontáveis efeitos colaterais que se desdobraram ao longo da virada do século, com a sucessão do que chamamos de vanguardas – diferentes linguagens visuais que se espalharam pelo continente nas décadas que se seguiram.
Dentro desse panorama histórico euro-centrado, é sempre importante perguntar: o que acontecia no Brasil e nas Américas enquanto esses movimentos emergiam? Como a arte moderna chegou até aqui? Ela de fato foi trazida, ou nós também já éramos, de certa forma, modernos? Ou nunca fomos modernos, como afirmou Bruno Latour? Considerando os processos coloniais que se estenderam por séculos a fio, a principal marca da nossa cultura, para além da marginalização política, econômica e social, era sua ausência nos destaques da história da arte universal. Segundo uma perspectiva de muitos pensadores eurocêntricos, nós, habitantes do Sul global, estávamos fadados a viver eternamente uma “cultura de repetição”, reproduzindo modelos importados. A nossos artistas, não caberia fundar ou inaugurar estéticas ou movimentos, e essa narrativa era reforçada pela história “oficial”, que contava como a modernidade chegara na América por meio de artistas que – na falta de academias de arte, de colecionadores e patronos, de interesse por parte do governo e da população – viajavam para a Europa para estudar e, impactados pelas vanguardas, voltavam para casa carregando essas referências na mala. Assim, teoricamente, seríamos devedores dos europeus, fadados à repetição. Mas, talvez, existam outros jeitos de contar essa história: talvez, seja no caldeirão de misturas vibrantes dos países colonizados e recém-independentes que resida a maior capacidade de se inventar a modernidade.
O movimento da arte moderna no Brasil foi uma das mais significativas expressões artísticas da virada do século, mesmo levando em consideração a presença dessa influência externa. A produção moderna representava uma primeira tentativa de construção de identidades estéticas e culturais locais, regionais, que seriam erguidas não apenas sobre padrões visuais europeus, mas também sobre revisões do passado pré-colonial, sobre novas ideias de identidade nacional, buscando uma outra genealogia para a criação artística. Talvez tenhamos demorado um tempo para alcançar o calendário das vanguardas estrangeiras, mas isso não significa que o que vimos surgir no período era apenas repetição, imitação. A arte moderna que se desenvolveu aqui em terras tropicais não se isentou das influências locais, não ficou imune aos efeitos da escravização e da miscigenação, do sincretismo religioso, nem foi refratário às identidades caipiras e nativas. Desde o Barroco, inclusive, é possível identificar como o contexto local já se misturava com as interferências exteriores, formando uma visualidade sui generis.
Ainda que parte da crítica especializada e dos historiadores considerem a Semana de Arte Moderna de 1922 como ponto de partida para a modernidade no Brasil, é sabido que já havia modernidade por aqui muito antes disso. Almeida Júnior, Abigail de Andrade, Eliseu Visconti, Nair de Teffé e Arthur Timótheo da Costa são apenas alguns dos muitos nomes que atuaram entre o final do século XIX e o início do XX e que, de maneiras distintas e únicas, exercitaram uma veia moderna em suas produções. Mas, mais do que isso, sabemos também que não era apenas no eixo Rio-São Paulo que a modernidade se concentrava. A Semana de 22, ainda que marcante no fluxo dos movimentos artísticos do Brasil, não foi o começo, muito menos o fim da modernidade no país, e nem São Paulo a única região geográfica onde o movimento se concentrara. O evento foi apenas mais um ponto crítico em uma longa história.
E essa longa história passa, infalivelmente, pelo estado do Paraná. Embora menos conhecido em escala nacional, o modernismo paranaense se desenvolveu plenamente em um período ligeiramente mais tardio, mas não menos relevante. A mostra "Encontro de Modernos" apresenta a formação desse cenário, além das conexões entre os artistas do estado com modernistas de outras regiões do país. Alfredo Andersen, um imigrante norueguês radicado em Curitiba em 1902, se destacou como um dos principais nomes do movimento. Sua formação se deu em importantes academias europeias, mas com sua chegada ao Brasil, sua produção já era reconhecida como moderna, especialmente considerando uso muito eloquente de uma luz vibrante nas pinturas que revelava a inegável influência expressionista em seu trabalho. Andersen foi professor de Theodoro de Bona, cuja obra registrava paisagens urbanas e rurais com uma técnica impressionista intensa, evidenciando uma busca por novas linguagens. De Bona explorava certa simplificação da forma, em pinceladas urgentes e uma materialidade mais rala. Guido Viaro, nascido na Itália, fixou residência em Curitiba em 1929, encontrando uma cidade pequena e ainda pouco afeita à arte e à cultura, mas já influenciada pela presença de Andersen, que se tornara seu companheiro fiel na luta para estabelecer um ensino artístico de qualidade na região. Sua produção era marcada por um interesse por figuras humanas, retratadas de maneira mais dramática e expressiva.
Mais jovem que os pioneiros já citados, mas também mais radical e experimental, Miguel Bakun combinou elementos regionais e técnicas modernistas em suas pinturas, registrando paisagens com uma sensibilidade muito própria. Sua maneira de retratar as araucárias de seu entorno e os indícios sugestivos de uma modernização urbana iminente, a tendência a uma quase-abstração e uma gestualidade muito livre eram apenas alguns dos traços que hoje ainda fazem de Bakun um mestre a ser descoberto. Assim como o pintor-marinheiro José Pancetti, o artista chegou a servir na Marinha, mas, na década de 1930 mudou-se para Curitiba, onde passou o resto de sua vida. Pancetti, por sua vez, serviu à marinha por décadas, e sua obra registrava a convivência com o litoral brasileiro, registrando diversas paisagens praieiras como Itanhaém, Cabo Frio, Mangaratiba, Rio de Janeiro, Itapuã, entre outras.
A exposição também traz a produção icônica de Emiliano Di Cavalcanti – um dos idealizadores da Semana de Arte Moderna de 1922 –, e seu olhar particular sobre a cultura brasileira, o samba, o morro carioca; e de Cândido Portinari que, mesmo sem integrar a programação da tal Semana, tornou-se reconhecido por documentar a paisagem interiorana de Brodowski no início de sua carreira e, mais tardiamente, por retratar o drama e a miséria dos retirantes. A presença de ambos na mostra reforça a agenda moderna dos paranaenses, revelando um olhar dedicado às particularidades culturais e sociais do interior e as características regionais que marcaram a pintura brasileira no período.
O mesmo pode ser dito das obras de Cícero Dias que, nascido em um engenho no Pernambuco, mas radicado no Rio de Janeiro (e, posteriormente em Paris), desenvolveu uma estreita relação com os artistas e intelectuais modernos do eixo carioca-paulistano. Um surrealista por excelência, trazia em suas primeiras aquarelas uma abordagem inovadora e experimental, misturando elementos tropicais em cenas oníricas, desafiando a orientação do plano pictórico e prescindindo do realismo em favor de invenções fantásticas. Assim como Dias, Alberto da Veiga Guignard também era afeito a atmosferas surreais. Original de Nova Friburgo (RJ), viveu anos na Europa, onde teve sua formação. Depois, passou pelo Rio de Janeiro, até instalar-se permanentemente em Minas Gerais. Em 1938, foi recebido por Guido Viaro em Curitiba, onde passou cerca de um mês por conta de uma mostra individual. Suas cenas de Ouro Preto e as festas de São João pintadas em montanhas enevoadas, meio líquidas, conversam com as marinhas de Pancetti e a luminosidade das paisagens de Andersen, compartilham da mesma textura das obras de Bakun, ecoam os fantásticos personagens nordestinos de Dias e as crianças interioranas de Portinari. A exposição, afinal, aproxima e cria novos diálogos entre artistas de diferentes origens, gerações, formações e estilos, mostrando como é possível encontrar modernismo e modernidade em cada canto desse país.
Julia Lima