Ensaio Sobre a Terra
“Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza” ¹
Ailton Krenak
Em 1975, o artista Manfredo Souzanetto realizou um de seus trabalhos mais icônicos. Em uma região de mineração na Serra do Curral, em Minas Gerais, Souzanetto alterou os dizeres de uma placa em que se lia “É proibido danificar árvores” para “É proibido danificar montanhas”. As fotografias, além de representarem uma guinada temática do artista rumo a discussão ecológica, exemplificam um tipo de posicionamento que parece consolidado na atualidade: é necessário ter uma visão macro sistêmica para a pauta ambiental.
A obra de Souzanetto é um dos disparadores da exposição “Ensaio sobre a terra”, coletiva que norteia a programação anual da Simões de Assis em 2024. Como o título indica, trata-se de uma reunião de pontos de vista e ideias sobre meio-ambiente. Nela, trabalhos da década de 1940 até a atualidade nos apresentam reflexões e usos diversos da natureza enquanto tema, matéria e suporte.
Embora o recorte temporal tenha sido considerado, trata-se de uma mostra formada por conjuntos que se relacionam a partir da aproximação - e dicotomia - de conceitos como imaginação, racionalidade e transposição ou transformação de matérias. A exposição organiza-se a partir de três grupos.
No primeiro deles, uma abordagem fabulativa nos introduz ao tema. Convivem, por exemplo, as criaturas de Chico da Silva, artista nascido na Amazônia e que em Fortaleza transformou os animais e monstros da sua juventude em uma prática coletiva, e duas singulares pinturas de Cícero Dias dos anos 1940. Nessas obras de Dias, formalmente associadas a uma figuração modernista de matriz europeia, o pintor indissocia frutos e animais, como se fizessem parte de um só corpo. Os exus de Chico Tabibuia, escultor que representava em madeira a entidade que na maior parte das vezes se apresentava a ele em sonho, localizam-se no mesmo espaço que as esculturas de Kássia Borges. A artista participa com três totens de cerâmica - prática tradicional dos Karajá, etnia da qual faz parte - nos quais índices femininos, como seios e vaginas, mesclam-se a grafismos e figurações de cobras, animal de importante força simbólica para seu povo por representar a finitude da vida.
Embora as transições de núcleos e a relação entre obras pretenda-se orgânica, um segundo momento da mostra foca-se principalmente em figurações de elementos naturais. É quando monotipias de Luiz Zerbini, que agigantam sementes e folhas e ressaltam as características mais microscópicas desses elementos, aparecem em relação a pinturas de José Antonio da Silva. Nas paisagens do pintor paulista a terra se mostra em diferentes estágios: devastada, arada e em fartura. Juntas, as duas produções conectam-se na oposição entre macro e micro. De Nilson Pimenta, por sua vez, uma cena de derrubada nos lembra da ação humana no meio-ambiente. O artista firmou-se em Mato Grosso e constituiu uma trajetória consistente baseada em figurações dos diferentes ecossistemas de sua região.
Encerra “Ensaio sobre a terra” um grupo de obras que, em relação aos núcleos anteriores, adquire viés experimental. São peças que se afastam do figurativismo e que têm na materialidade sua potência criativa. O uso da madeira, por exemplo, é recorrente em Leonardo Drew, Abraham Palatnik e Dhiani Pa’saro. No caso de Drew, há um interesse latente pelos processos relacionados a organicidade dessa matéria-prima e suas reações a partir do contato com outros elementos. Palatnik e Dhiani, no entanto, debruçam-se nas possibilidades compositivas que repetições e padronagens podem criar. Em Palatnik, o cerne da investigação é a impressão de movimento adquirido a partir das repetições, enquanto Pa’saro cria complexas marchetarias a partir de um complexo jogo de padronização e espelhamento.
Em um momento em que nos é exigido repensar a relação com o planeta, propomos cruzar momentos e trajetórias que confirmam o meio-ambiente como vetor potente de criação e de ideias que nos façam avançar rumo ao futuro.
Ao visitante, fica o convite para arar a terra.
Thierry Freitas
¹ KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. 1ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. Pgs. 16-17.