Não um sonho
Não um sonho,
mas o mundo das imagens que
levam a mente onde ela não teria
jamais consentido em ir,
o mecanismo que está ao alcance de todos.
Não um sonho é a frase que aparece na abertura do filme experimental La Coquille et le Clergyman (A Concha e o Clérigo, 1927), dirigido pela cineasta feminista Germaine Dulac a partir de um roteiro de Antonin Artaud. Considerado o primeiro filme surrealista, foi realizado antes do consagrado Un Chien Andalou (Um Cão Andaluz, 1929), de Luis Buñuel e Salvador Dalí, e apresenta uma narrativa fragmentada, cujas claras alegorias sexuais, posicionamentos feministas e anticlericais geraram críticas e escândalo quando de seu lançamento. É construído a partir de sobreposições imagéticas, distorções e interferências diretas na película, conectando-se com autores experimentais do cinema do mesmo período, como Dziga Vertov, F.W. Murnau, Fritz Lang, Sergei Eisenstein, entre outros. A epígrafe aponta para a liberdade que a produção de imagens mentais proporciona, seja durante o sono ou como possibilidade de imaginar a vida.
Não um sonho, a exposição, utiliza o filme quase centenário de Dulac como eixo de possibilidades para revisitar propostas surrealistas históricas e seus potenciais imaginativos e críticos, em um momento em que a própria realidade impõe restrições para a vida individual e social – até há pouco tempo, inimagináveis. Reexaminar essas alternativas, e aquelas que o cinema de Dulac evoca, pode permitir também ampliar as oportunidades de invenção de futuros.
Buscou-se abordar a atividade surrealista, conforme André Breton caracterizou a abordagem daquela vanguarda do início do século 20. Porém, a exposição é um exercício imaginativo que propõe ir além da filiação ao escopo histórico, promovendo um diálogo entre produções da década de 1920 até hoje, recuperando aspectos que ganharam maior contundência na atualidade: a subversão de linguagens, a discussão de gênero e o feminismo.
Nesse sentido, o (primeiro) surrealismo propõe uma convergência com o conhecimento, a ciência e a experimentação, mas sobretudo a pauta crítica ao capitalismo, com forte interesse na cultura de outros povos – o chamado “outro”, a figura exótica amplamente badalada nos circuitos europeus. Como operação fundamental, a atividade surrealista não hesita em insuflar (animar) vida nos objetos, despertando um fascínio particular por fantasmagorias.
O conjunto de artistas reunides permite revisitar, por meio de obras e documentos, tanto o surrealismo histórico como atualizar suas pautas oníricas e iconoclastas. Foram organizados núcleos dialógicos, simulando duplos, estratagema caro ao projeto inicial do movimento.
Cícero Dias (1907-2003) e Ismael Nery (1900-1934) são os emblemas conectados aos modernismos europeus. Ambos, distanciados do eixo Rio-São Paulo. O primeiro, pioneiro no país pelas perspectivas surrealistas presentes na exposição de aquarelas, em 1928, na Policlínica (Rio de Janeiro). Nery, apesar de uma curta trajetória, realizou uma obra densa de elaborações filosóficas, e distante do debate da identidade nacional.
Como se sabe, o ambiente masculino procurou definir as narrativas sobre as vanguardas europeias, Apenas recentemente estudos vêm revelando como a atuação de artistas mulheres foi alvo de apagamento constante – o próprio Aimé Césaire, pai da Négritude, em relação a Suzanne Césaire e as irmãs Nadal , é um exemplo significativo.
Assim, em outro núcleo da mostra, Meret Oppenheim, autora de Le Déjeuner en Fourrure (1936), fetichizado como ícone das atividades surrealistas, manteve ao longo de sua trajetória um diário de sonhos, por influência de seu pai, psicanalista; Oppenheim é articulada com Louise Bourgeois, que tematizou a relação com o Pai, o contexto emocional e traumático da infância, o que resultou em obras explicitamente sexuais. A contribuição de Maria Martins, ainda devedora de leituras desprovidas da estigmatização da “mulher-esposa de embaixador”, está em Amazonia, 1943 (fólio com 8 textos e 16 reproduções fotográficas das obras expostas em individual na Galeria Valentine, simultaneamente à mostra “New Paintings”, de Piet Mondrian). Outra artista em compasso de revisitação crítica é Niobe Xandó que, antes do período marcado pelas Máscaras, elaborou a série de flores fantásticas.
Gretta Sarfaty e Hudinilson Jr. estão presentes com obras demonstrativas da vitalidade e autonomia dos artefatos, tratados de forma distanciada da alegorização surrealista tradicional. Nesse sentido, os trabalhos da artista curitibana Efigênia Rolim (1931) recuperam os descartes cotidianos transformados em elementos de sonhos e Wanda Pimentel, com proximidade ao universo feminino, cotidiano, da comunicação em massa e da relação dos corpos das mulheres nesse ambiente conecta-se diretamente com o filme de Dulac.
Mirtes Marins de Oliveira